Leituras: Lendo Kishore Mahbubani – parte 2

A China Já Ganhou?

Has China Won? foi publicado originalmente em 2020.

Em 2018 Donald Trump declarou guerra comercial e tecnológica à China. Todo o país aplaudiu a ideia, havendo união entre o Partido Republicano e Partido Democrata em torno da ideia. Até os empresários norte-americanos que tinham negócios na China aprovaram. Joe Biden continua-a. Kishore Mahbubani é contra essa guerra e adepto do livre comércio. Neste livro explica porquê.

China

  • Depois da crise financeira de 2007–2008 os políticos e empresários chineses tornaram-se arrogantes: quiseram ter vantagem em tudo. Isso levou a que primeiro os grandes empresários norte-americanos e depois o eleitorado norte-americano apoiasse a guerra comercial de Trump. Para Kishore Mahbubani este é um erro estratégico da China.
  • Trabalhadores chineses têm de trabalhar muito para produzir bens a baixo custo que possam ser exportados para o resto do mundo. Por essas exportações o governo chinês recebe dólares que depois converte em yuans para pagar aos trabalhadores. O restante usa para comprar títulos do Tesouro dos Estados Unidos. E o Tesouro dos Estados Unidos usa os dólares para pagar despesas públicas.
  • Num futuro próximo o renmimbi não substituirá o dólar (como estamos em 2023?).
  • Em 2019 o subdirector do departamento de pagamentos do Banco Popular da China (BPC), Mu Changehun, declarou que o BPC estava perto de emitir as suas criptomoedas (isso está a acontecer).
  • Em 2016 os jornais norte-americanos disseram que Xi Jinping renegou a promessa de não proceder à militarização das ilhas do mar da China. Fez a promessa quando esteve nos Estados Unidos em 2015 e renegou-a em 2016. Para o diplomata norte-americano James Stapleton Roy a China propôs uma série de acordos realizados no âmbito da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN). Obama não o ouviu e aumentou as patrulhas navais. Em resultado disso a China procedeu à militarização das ilhas do mar da China.
  • A China já teve inúmeras oportunidades de se tornar militarista ao longo da sua história. Oportunidades que não aproveitou.
  • A China celebra mais o erudito que o soldado. Mas o ideal é o homem que congrega os dois: é erudito e é soldado, tudo ao mesmo tempo.
  • As últimas conquistas territoriais da China: Tibete e Sinoquião.
  • Os chineses aprenderam a viver com vizinhos com quem travaram guerras anteriormente: Myanmar (Birmânia), Japão, Coreia e Vietname (para Kishore Mahbubani é espantoso os chineses terem aceitado a independência do Vietname).
  • À medida que a China se for tornando mais poderosa quererá usar mais o seu poder de influência nos vizinhos (como os Estados Unidos fazem na América Latina).
  • Os chineses não gostam de recorrer ao uso da força (= militares) como primeira opção.
  • Os chineses ficaram desconcertados quando viram que as intervenções militares dos Estados Unidos no Médio Oriente minaram os seus interesses nacionais. Isso acabou por ser positivo para a China, até porque desviou também dinheiro que poderia ser usado contra a China. E isso motivou mais os chineses em não se envolver em lutas desnecessárias.
  • Um dos poucos motivos que levariam a China para uma guerra é Taiwan. Taiwan era chinesa até a China ser forçada a entregá-lo ao Japão, depois da Guerra Sino-Japonesa de 1894-1895. No final da 1ª Guerra Mundial os chineses tentaram recuperar Taiwan, por ter colaborado com os Aliados. Mas estes preferiam manter Taiwan japonesa (o Japão também se juntou aos Aliados). Nessa altura os chineses sentiram-se traídos.
  • Outro motivo seria o mar da China Meridional, onde por vezes colidem navios norte-americanos e chineses. Aí se nota a crescente agressividade de ambos os países.
  • Os chineses têm respeitado acordos internacionais.
  • Os políticos e diplomatas chineses tentam tomar decisões versáteis, flexíveis e racionais. Os Estados Unidos (sob Trump e não só) estão cada vez mais unilaterais, rígidos, inflexíveis e doutrinários.
  • É do interesse da China que os Estados Unidos gastem a maioria do seu orçamento em armas.
  • As decisões da China sobre o fabrico e compra de armas não é baseada em grupos de pressão. O que é bom.
  • Os dias o maoismo são recordados com horror por muitos chineses. Mas Xi Jinping fala sempre deles com nostalgia.
  • O livre comércio e o crescimento económico nunca tornarão a China uma democracia. É fácil perceber isso estudando a história da China.
  • O autor pensa que a continuação do governo não democrático de Xi Jinping pode ser uma coisa boa para a China e para o mundo. Porque uma democracia chinesa à moda ocidental só traria confusão e guerra ao mundo.
  • Bens públicos que o PCC fornece ao mundo: domesticação do nacionalismo chinês; crescimento económico; e trouxe ordem.
  • Os chineses têm apostado no desenvolvimento intelectual. Sobretudo escolher esse tipo de pessoas para lugares de chefia.
  • A China evita intervir em assuntos internos de outros países.
  • Os cidadãos da classe trabalhadora de Hong Kong têm rendimentos muito baixos e o aumento do preço das habitações e crescente inflação no território levou a alguma pobreza (e muita pobreza envergonhada), o que levou a manifestações anti-Pequim.
  • A China tem cometido vários erros estratégicos em Hong Kong, graças à influência dos milionários do território.
  • Não há liberdades políticas na China. Mas a maioria da população compara a vida que leva não com o Ocidente mas com o que era no passado.
  • A China permite que muitos turistas a visitem (ao contrário do que acontecia na União Soviética) e permite que os chineses visitem como turistas muitos países.
  • Em termos de desigualdade, China e Estados Unidos estão neste momento equiparados. Nalguns casos até seria melhor uma pessoa pobre nascer na China que nos Estados Unidos.
  • O sistema de crédito social chinês não deixou os seus cidadãos chocados porque significa que passariam a saber em quem confiar.
  • Na década de 20 do século XX os chineses tentaram copiar os ocidentais. No entanto hoje são poucos chineses que o querem fazer.
  • A melhor maneira de motivar a China para uma maior abertura não é dar-lhe lições ou pressioná-la, mas encorajar o turismo, por exemplo.
  • Em 2006, numa visita à Índia, Bo Xilai, então ministro do Comércio, fez criticas à democracia. A comitiva aplaudiu a sua coragem. Kishore Mahbubani diz que nunca antes nem depois viu este comportamento, que não é tolerado na China.

Estados Unidos

  • Donald Trump declarou guerra comercial e tecnológica à China sem estabelecer uma estratégia de longo prazo (em 2023 já há uma estratégia de longo prazo?). Para Kishore Mahbubani foi uma estratégia a longo prazo o que os fez vencedores da Guerra Fria. Neste ponto, Mahbubani cita abundantemente o pensamento de George F. Kennan.
  • A administração de Donald Trump também propôs um acordo comercial também propôs à China um acordo desigual, em que os Estados Unidos teriam mais vantagens que a China, o que deixou os políticos chineses furiosos.
  • Com Trump (eu diria até antes dele) deu-se uma erosão global da confiança nos EUA.
  • A confiança dos EUA é baseada no dólar que até à pouco tempo estava bem protegido pelo sistema financeiro global, o que dava aos norte-americanos um sentimento de invulnerabilidade.
  • Ao contrário de muitos países (como Portugal) que têm de se endividar, aos norte-americanos basta imprimir mais dólares para pagar as suas despesas.
  • Donald Trump e Elizabeth Warren chegaram a defender a desvalorização da moeda para ganhar mais competitividade. Para o economista, investidor e gestor de fundos Ruchir Sharma isso seria muito perigoso porque os Estados Unidos não são um país emergente.
  • Trump impôs multas pesadas a bancos que trabalhassem com o Irão, o Sudão e Cuba. Em resultado disso, muitos países começaram a pensar sair da dependência do dólar.
  • Nesta altura, durante o governo Trump, houve personalidades a falar na hipótese de deixar o dólar como moeda de reserva mundial: por exemplo Mark Carney (entre 2008 e 2013 foi governador do Banco de Inglaterra) e Maurice Obstfeld (antigo economista-chefe do FMI).
  • Nos últimos 30 anos a desigualdade explodiu nos Estados Unidos. Há inúmeras causas para isso, uma delas a presença de mão de obra barata chinesa (e de outros países) no mundo globalizado.
  • Os políticos norte-americanos não prepararam o impacto que a entrada da China na Organização Mundial do Comércio (OMC), que aconteceu em 1999. Os trabalhadores norte-americanos foram deixados sozinhos.
  • Muitos países europeus gastam algum dinheiro (pouco) na qualificação dos seus trabalhadores. Os Estados Unidos gastam muito menos que qualquer país europeu.
  • Os norte-americanos partem do pressuposto que vão ser os nº 1 do mundo em política e em economia para sempre. Os políticos norte-americanos jamais colocarão a hipótese de ser nº 2. Os norte-americanos detestam a ideia. Mas essa crença coloca problemas a quem realmente queira chefiar o país. A União Soviética fracassou porque nenhum líder considerou a hipótese do país fracassar.
  • Esta dificuldade em pensar que não se pode ganhar tudo parte da crença do excepcionalismo norte-americano e da doutrina do destino manifesto.
  • O autor critica a pretensão de virtude dos norte-americanos, que é um mito. Para isso cita Stephen M. Walt (1), que a desmascarou. Esta pretensão tem raízes históricas: durante a época colonial os brancos norte-americanos tinham um nível de vida superior aos brancos britânicos. Mais recentemente, entre o final da 2ª Guerra Mundial e a década de 80 do século XX houve um novo boom económico. Este período no entanto acabou há muito.
  • Está muito documentada a pobreza crescente do norte-americano médio bem como a sua perda de influência a nível político. Neste momento os Estados Unidos caminham para ser uma plutocracia. Em teoria as pessoas revoltar-se-iam, mas não é isso que acontece.
  • O mito que toda a gente pode ser rico desde que trabalhe muito é mantido pela existência de pessoas como Bill Gates, Larry Page, Mark Zuckerberg, Jeff Bezos e outros.
  • O objectivo do Make America Great Again (MAGA) de Trump nunca foi pensar nessas questões, apenas arranjar formas de manter as ilusões norte-americanas e de continuar a fazer bem aquilo que os norte-americanos pensam que fazem bem.
  • Há muitas falsidades sobre a China são fabricadas por uma aliança de serviços secretos e media. Partem da Aliança Cinco Olhos (em inglês: FIVE EYES, também FVYE) é um acordo entre Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Reino Unido e Estados Unidos. Esses países se reuniram a partir do Tratado UKUSA que visava a cooperação entre as inteligências dessas nações.
  • Os Estados Unidos têm enorme reverência pelos seus soldados (e com razão, note-se).
  • Os norte-americanos desejam que os chineses se tornem parecidos com eles. Mas se esse desejo se realizar os norte-americanos não vão gostar do resultado final.
  • Os norte-americanos pensam que têm como missão defender valores universais e promover os valores dos Estados Unidos. Os chineses acreditam que apenas eles podem ser chineses no que diz respeito à cultura, valores e estética. Por isso não esperam que os outros se tornem iguais a eles.
  • Este traço de universalismo talvez explique o facto dos Estados Unidos se terem envolvido em tantos conflitos.
  • Depois da vitória na Guerra Fria, Clinton abraçou a hegemonia neo-liberal, não mudando nada em termos políticos. O autor considera isso um erro. George W. Bush e Barack Obama continuaram essa política. (E Donald Trump e Joe Biden também).
  • Trump inaugurou a era anti-China nos Estados Unidos.
  • Antes do 11 de Setembro as posturas moderadas eram ouvidas. O Departamento de Defesa seguia as ideias do Departamento de Estado. Depois do 11 de Setembro as posturas moderadas deixaram de ser ouvidas.
  • O autor considera as invasões do Afeganistão e do Iraque uma perda de tempo e de dinheiro. Foram guerras inúteis, que apenas reforçaram o poder da Al-Qaeda e dos líderes dos partidos fundamentalistas islâmicos. Não resolveram nenhum problema, antes criaram novos e preocupantes problemas.
  • As intervenções militares dos Estados Unidos no Médio Oriente minaram a hipótese do dinheiro ser aplicado noutros assuntos, nomeadamente na melhoria da vida dos mais pobres.
  • A administração de Trump foi a que menos respeitou acordos internacionais.
  • Os Estados Unidos têm uma forte cultura varonil. Os líderes admirados são os que apelam à guerra (seja ela qual for). Líderes como Obama e Jimmy Carter são considerados fracos. (Não percebo esta opinião do autor e dos norte-americanos (??) sobre Obama e Carter.). No entanto há ocasiões em que a abordagem pacifista é a melhor.
  • Uma guerra total entre os Estados Unidos e a China destruiria ambos os países. Por isso é do interesse de ambos canalizar recursos para outros assuntos que não o armamento.
  • E é isso que os Estados Unidos continuam a fazer: canalizam a maioria do orçamento para a Defesa. Fareed Zakaria escreveu em 2011 que nos últimos 13 anos o orçamento do Pentágono tinha sempre aumentado, algo sem precedentes. Entre 2001 e 2009 a despesa global com a Defesa aumentou 70%.
  • O autor pergunta-se se é possível os Estados Unidos mudarem esta política.
  • É quase impossível mudar de política porque os processos decisórios foram blindados. As armas são compradas não em função de uma estratégia previamente pensada mas em função dos grupos de pressão ( lóbis). São os senadores e membros da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos que decidem que armas comprar e estes precisam de quem financie as suas campanhas eleitorais.
  • Com a vitória na Guerra Fria o número de intervenções no estrangeiro dos Estados Unidos aumentou em vez de diminuir (um erro).
  • Os Estados Unidos têm laboratórios de ideias estratégicas muito bem financiados. São os melhores do mundo. E são altamente competitivos uns com os outros. Existem laboratórios destes com várias perspectivas, da esquerda à direita. Não obstante, funcionam em mentalidade de grupo (= pensamento único). Um académico norte-americano, Stephen Walt, estudou estes laboratórios e concluiu que o sector lucra mais com as intervenções dos Estados Unidos que com uma abordagem pacifista. Muitos desses laboratórios deixariam de existir se os Estados Unidos optassem por outras estratégia.
  • Os últimos presidentes dos Estados Unidos têm dado cargos diplomáticos como prenda aos seus maiores financiadores. Isto faz com que a diplomacia norte-americana seja cada vez mais pouco profissional e objectiva.
  • Para piorar, durante o governo de Trump foi proposto cortar o orçamento do Departamento de Estado (já minúsculo). A maioria dos cargos dos enviados especiais dos EUA foi abolida. (Como está a situação em 2023?)
  • A maioria dos diplomatas passa o tempo a negociar com as agências de Washington que políticas deve seguir em vez de receber as instruções todas de uma vez e passar o tempo a negociar com o país em que estão (só nos Estados Unidos é que acontece isto).
  • Os laboratórios e grupos de interesse mais bem financiados são os que exageram nas ameaças externas. Todo o complexo militar-industrial norte-americano tem interesse nisso.
  • O mundo mudou desde a Guerra Fria mas os Estados Unidos não estão a acompanhar.
  • Os Estados Unidos abandonaram militarmente o Sudoeste Asiático depois do Vietname. Se o raciocínio da maioria dos opinadores norte-americanos tivesse certo essa região teria mergulhado no caos. Em vez disso nasceu a Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), uma organização intergovernamental regional que compreende dez países do sudeste asiático, que promove a cooperação intergovernamental e facilita a integração econômica, política, de segurança, militar, educacional e sociocultural entre seus membros e outros países da Ásia.
  • Trump enquanto presidente mostrou pouco respeito pelas instituições governamentais dos Estados Unidos.
  • Em termos de desigualdade, China e Estados Unidos estão neste momento equiparados. Nalguns casos até seria melhor uma pessoa pobre nascer na China que nos Estados Unidos.
  • O sistema judicial é mais independente nos Estados Unidos que na China mas na China todas as classes são tratadas de forma igual (o que não acontece nos Estados Unidos).
  • Promover a democracia a qualquer custo tem o efeito contrário ao desejado.
  • O facto das eleições nos Estados Unidos estarem dependentes de financiamentos põem em causa a democracia. Mas a maioria dos norte-americanos não veem assim. Para eles qualquer restrição no uso de dinheiro equivale a um atentado à liberdade de expressão.
  • Existe o mito de que é a população que escolhe os seus representantes, o que há muito tempo não é verdade.
  • Quem votar no Congresso dos EUA pelo controlo das armas perde financiamento (um lóbi muito poderoso) e é quase impossível reeleger-se. Da mesma maneira, é impossível votar subida de impostos.
  • Neste momento os interesses de uma “aristocracia” superam os interesses da população (notar que o autor escreveu isto na era Trump mas a era Biden não é assim tão diferente).
  • No passado muitas políticas criadas nos Estados Unidos foram boas para a população. Actualmente poucas (ou nenhumas).

Resto do Mundo

  • Dos países onde se derrubaram regimes pró-soviéticos só a Polónia, a Hungria, A República Checa e a Eslováquia tiveram êxito. Nos restantes tem prevalecido a instabilidade (como a Ucrânia) ou a autocracia (como o Quirguistão).
  • Em 2019 Angela Merkel, quando visitou a China, apelou a uma solução para a guerra comercial Estados Unidos-China. O primeiro-ministro de Singapura, Lee Hsien Loong, fez o mesmo nesse ano (Tenho quase a certeza que a posição da Alemanha neste assunto mudou. E de Singapura?). Isto porque esta guerra comercial e tecnológica prejudica os interesses de outros países. No entanto na altura a maioria dos líderes ficou em silêncio.
  • Os Estados Unidos governados por Trump afastaram-se da ParceriaTranspacífica (TPP). Os ouros membros continuaram no acordo mudando-lhe o nome: “Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífica” (AAPPT). O acordo permanece substancialmente o mesmo, mas contém uma lista de 20 “disposições suspensas” que foram adicionadas ao TPP por insistência dos EUA e que agora não são mais vinculativas (2). Vários países africanos também prosseguiram com o acordo da Área de Livre Comércio Continental Africana (ALCCA ou AfCFTA) (3).
  • Em 2020 a China e outros 14 países da Ásia e Oceania assinam o maior acordo comercial do mundo: o Tratado RCEP (4).
  • Para Kishore Mahbubani é ridícula a ideia, tanto dos Estados Unidos como da China, de que os outros países os apoiarão incondicionalmente na guerra comercial (declarada por Trump). Ambos pressionarão os outros países para isso, claro. Mas os outros países não serão os mesmos que durante a Guerra Fria.
  • Para Kishore Mahbubani o país que terá que fazer a escolha mais difícil será a Austrália. Em termos de cultura e defesa está ligada aos Estados Unidos. No entanto economicamente está mais ligada à China do que aos Estados Unidos. (Qual a situação em 2023?)
  • Os políticos dos Estados Unidos esperam sempre que os políticos europeus alinhem nas suas políticas e não as questionem (neo-colonialismo, pois).
  • Quando foi anunciado que a UE iam usar tecnologia 5G da Huawei a administração Trump teve uma reacção forte e feia. Mike Pompeo disse que não iriam partilhar informações com quem tivesse essa tecnologia. (Em 2023: a UE decidiu abandonar a tecnologia 5G da Huawei. No entanto ainda há dessa tecnologia por aí….). Na altura Bill Gates veio afirmar que a visão de Trump, Pompeo & companhia era paranoica.
  • Os países da Europa inscreveram-se entusiasticamente na NATO durante a Guerra Fria porque a União Soviética estava geograficamente muito perto e a ameaça era real. Mas com a China a ameaça não é semelhante. O dilema é: afinidade cultural versus realidades geopolíticas.
  • O autor previu (e bem) uma “guerra por procuração” na Ucrânia e na ex-Jugoslávia. Para Kishore Mahbubani dificilmente a Rússia de Putin invadirá algum país da Europa (eu tenho dúvidas se o autor está certo: há hipóteses da Rússia invadir outros países da Europa, sim).
  • A principal ameaça para a Europa são os imigrantes da África e do Médio Oriente (aqui o autor repete as ideias de A Queda do Ocidente?: Uma Provocação). O autor aconselha a Europa que, se quiser apostar nos seus interesses a longo prazo, deve tornar o desenvolvimento de África uma prioridade, em parceria com a China.
  • Os Estados Unidos vão fazer tudo para que os países da Europa participem da Iniciativa Cinturão e Rota da Seda.
  • O país que mais teve uma relação difícil com a China no século XX foi o Japão. Em 1895 o Japão ganhou a Guerra Sino-Japonesa. Ocupou a China entre 1937 e 1945. Por isso a maioria dos chineses têm obsessão pelo Japão (detestam-nos). Nesse contexto muito da cólera chinesa contra o Japão (que emerge de vez em quanto) é baseada em factos reais. No entanto, parte é também fabricada. A China é capaz de ignorar esses factos quando outros interesses se tornam mais importantes. Quando Nixon visitou a China em 1972 não deu conhecimento ao Japão. Os japoneses não souberam (segundo o autor) tirar a lição desse episódio: quando os Estados Unidos e a China se juntam os interesses dos outros países não interessam.
  • É do interesse da China que os Estados Unidos sejam aliados do Japão: se eles se afastassem do Tratado de Cooperação Mútua e Segurança entre os Estados Unidos e o Japão (assinado em 1960) o Japão voltaria a ter um grande exército e levaria a que tivesse políticas mais agressivas com a China.
  • Mesmo com esta aliança com os Estados Unidos, é pouco sensato para os japoneses não procurarem ter relações cordiais com a China: e relações independentes dos Estados Unidos.
  • Há uma relação amor-ódio do Japão com a China. A raiz da cultura japonesa é a chinesa: mas foi criada uma nova cultura (a japonesa) em cima desta raiz. Há uma profunda afinidade cultural entre chineses e japoneses mas é uma relação complexa. Muitos chineses optam hoje por ir fazer turismo para o Japão. Esta relação dá ao autor esperança a que no futuro os traumas do passado sejam ultrapassados. E mesmo a China exporte algumas práticas democráticas do Japão (por vontade dos seus políticos, não por invasão).
  • A democracia japonesa é tranquila, calma e estável, refletindo o espirito do país.
  • A democracia da Índia é barulhenta e exuberante, refletindo o espirito do país.
  • A China e a Índia têm raízes culturais comuns, partilham o budismo. Por isso será uma ilusão pensar que a Índia se tornará um aliado contra a China. Não obstante, os indianos encontram-se divididos em relação a este assunto.
  • Curiosamente Narendra Modi deu-se melhor com a China de Xi Jinping do que com os Estados Unidos de Trump (embora Modi e Trump tivessem afinidades ideológicas). No entanto a Índia decidiu não participar da Iniciativa Cinturão e Rota da Seda.
  • Há interesses das elites norte-americanas e indianas, em relação à China, que são coincidentes.

Concluindo

O autor conclui que o conflito Estados Unidos-China é ao mesmo tempo inevitável e evitável. Tudo dependerá do bom senso de ambos os países. O bom senso norte-americano meteu férias na era Trump. Os Estados Unidos desde o 11 de Setembro, por gastarem biliões em guerras, perderam oportunidades de desenvolver outros aspectos do país (educação, emprego condigno, ferrovia, etc.) que também são importantes para se imporem globalmente.

Para Kishore Mahbubani, dado as alterações climatéricas, devemos concentrar-nos mais no que temos em comum do que nas nossas diferenças: afinal, todos somos seres humanos. Em 2016 o autor e Lawrence Summers (5) escreveram um artigo em que defenderam que o que está a acontecer é uma fusão de civilizações, não um choque de civilizações (6).

Eu concluo que…. Todas as críticas de Kishore Mahbubani aos Estados Unidos parecem-me certeiras. Tinha dúvidas, mas agora já não: o complexo militar-industrial não é um mito nos Estados Unidos. É uma realidade.

Em relação à China ele tem uma visão semelhante à Martin Jacques mas menos ingénua: há aspectos da cultura chinesa que nunca vão mudar, outros terão mudanças lentas, outros já estão a mudar agora mesmo (ou ontem).

Na minha opinião tanto a pressão constante dos Estados Unidos como uma China cada vez mais expansionista levarão a que entretanto a China invada Taiwan. Tal como na Ucrânia, haverá razões históricas para essa invasão.

Parece-me exagerado falar tanto de choque de civilizações como de fusão de civilizações. Parece-me mais realista falar de aproximação de civilizações. O Ocidente está cada vez mais parecido com a China e com a Rússia (embora os muitos ocidentais achem que não).

Mais uma vez o balanço final do livro é superpositivo: recomendo!

Leitura de: Kishore Mahbubani, A China já ganhou? (Lisboa, Bertrand 11-17, 2023)

Nota Lateral 1: Kishore Mahbubani cita inúmeros autores e gurus do mainstream norte-americano. Desta vez não fiz a lista. E cita também Yuval Noah Harari.

Nota Lateral 2: Kishore Mahbubani faz parte do mainstream neo-liberal (prova disso: Paulo Portas chegou a recomendar este livro no seu espaço de comentário na TVI). Mas não é total e acriticamente pró-americano. Isso explica-se porque nasceu em Singapura e conviveu desde cedo tanto com a cultura chinesa como norte-americana.

(1) Stephen M. Walt, The Myth of American Exceptionalism. Foreign Policy, 11/10/2011.

(2) Países do AAPPT: Singapura, Brunei, Nova Zelândia, Chile, Austrália, Peru, Vietname, Malásia, México, Canadá e Japão.

(3) Países do ALCCA: África do Sul, Angola, Argélia, Chade, Comores, Costa do Marfim, Djibouti, Essuatíni, Gabão, Gâmbia, Gana, Guiné Equatorial, Lesoto, Mauritânia, Marrocos, Moçambique, Níger, Quénia, República Centro-Africana, República do Congo, Ruanda, Saara Ocidental, Senegal, Seicheles, Sudão, Tanzânia, Uganda e Zimbabwe.

(4) Países do Tratado RCEP: Brunei, Camboja, Indonésia, Laos, Malásia, Myanmar, Filipinas, Singapura, Tailândia, Vietname, China, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia.

(5) Kishore Mahbubani e Lawrence H. Summers, The Fusion of Civilizations: The Case for Global Optimism. Foreign Affairs, Maio-Jun. 2016.

(6) Samuel P. Huntington tornou-se conhecido por propôr a ideia de choque de civilizações: os principais actores políticos do século XXI seriam civilizações e não os estados nacionais, e as principais fontes de conflitos após a guerra fria, não seriam as tensões ideológicas mas as culturais. Essa ideia foi desenvolvida por ele no livro
O choque das civilizações e a mudança na ordem mundial.

Última Actualização: 12/06/2023