Notas sobre jornais em papel, fim do jornalismo e redes sociais

A afirmação de Paulo Querido parece-me uma profecia que tem tudo para ser verdade:

O lugar dos jornais de papel é no museu.

No entanto essa verdade pode (podia) ser contestada.  Convencemo-nos que os jovens são nativos digitais e que o papel já não fazia sentido. O que acontece? Isso mesmo. Mas poderia não ser assim.

De facto, a tecnologia pode ser benéfica. Mas não sempre. Logo nas primeiras páginas do seu livro A Fábrica de Cretinos Digitais, de Michel Desmurget demonstra que a ideia de nativos digitais (criativos, multitarefa, dinâmico, impaciente, amante da experimentação, etc.) é um mito. Pois bem, em Portugal acreditamos nesse mito como se fosse verdade. Pois bem, será verdade. Em Portugal tem-se levado essas ideias ao limite, fazendo-se inclusive exames nacionais num computador.

O certo é que num mundo cheio de sítios web, APPs e redes sociais qualquer jovem se sente entediado perante um jornal em papel. Quantos jovens comprarão jornais em papel hoje? Muito poucos. E no futuro? Nenhum.

Pergunto-me se essa profecia – o lugar do papel é no museu – não terá nascido apenas por razões económicas, não tendo nada a ver com o progresso da tecnologia.

Pergunto-me se quem está a ler o jornal de papel tem menos hipóteses de ter grande dose de dopamina. Um vídeo curto de uma rede social ou um videojogo têm mais dopamina, logo qualquer jovem o considera melhor que um jornal em papel. Os jornais em papel parecem de facto mais parados e desinteressantes. Ora as empresas de media trabalham para esses jovens viciados em prazer, não vendo vantagem económica em investir em papel.

No entanto essas redes sociais aumentam a distância entre as pessoas. Mesmo entre os adultos, quanto mais entre jovens.

Por outro lado, continuam a existir jornais escolares. E alguns (ninguém diria!) são em papel. Provavelmente já não compensa economicamente imprimir tantos jornais em papel hoje. Mas não é um pouco cedo (ainda) para declarar a morte dos jornais em papel?

O vazio, em termos de jornalismo, que era ocupado pelos grandes grupos de comunicação social, vem sendo ocupado cada vez mais projectos de pequena e média dimensão. A maioria, se não todos, só existe na internet.

Por que razão muitos países da Europa, os EUA, o Japão continua a ter jornais em papel que vendem aos milhares, alguns aos largos milhares? Razões ligadas à literacia, nuns países, e à cidadania noutros. Há também geografias onde não se verificou a sucessão de danos auto-infligidos, como decorreu em Portugal.

Que danos auto-infligidos foram esses? Vivemos numa economia de dividendos, portanto para onde vão os lucros de um jornal? Sobretudo para dois lugares: os gestores e os accionistas (se os houver). Todos os outros ficam com as migalhas que sobram.

No caso da Global Media não têm faltado gestores que andaram a sugar recursos até ao tutano e jornalistas que aceitaram tudo para que mantivessem o seu lugarzinho. Muitos directores e ex-directores passam mais tempo nas televisões como comentadores que nas redações.

O Jornal de Notícias e O Jogo têm grande volume de vendas e dão lucro. A TSF, se não a esvaziarem de mão de obra e deixar de ter uma programação chiclete (repete e repete e repete) também daria dinheiro. Mas aparentemente o fundo que gere actualmente a Global Media não está interessado nem em ter notícias nem em fazer dinheiro com elas.

Porque vivemos numa economia de dividendos o que se passa na Global Media – e noutros grupos de comunicação social – são administradores acabados de chegar a fazer uma “limpeza” de pessoas para redução de custos. Começam sempre dispensar os trabalhadores com salários mais altos, mas nunca tocando na regalias das chefias e direções. Resultado: um inevitável decréscimo de qualidade, desmotivação dos “sobreviventes” e ausência de figuras de referência dentro da redação. Passa-se a dar notícias em modo low-cost. Cada vez mais se depende de comunicados de imprensa e se fala menos com pessoas. Claro que isso diminui a qualidade do jornalismo.

Para além da questão dos dividendos (referido atrás) há que referir que os media trazem poder aos seus donos. É essa, aliás, um dos principais porque os jornais portugueses estão hoje como estão. A ideia destes grupos económicos é usarem os media para propagarem a sua agenda ideológica, remetendo para o desemprego (ou para o anonimato) quem pensa diferente.

Em Portugal já existiram vários projectos jornalísticos SÓ de internet, sem papel, que tiveram de fechar por falta de sustentabilidade económica. As pessoas e empresas ainda não percebem este modelo de negócio. Por outro lado, há outros custos associados a criar um jornal SÓ de internet. Deixo aqui um comentário muito pertinente do jornalista Carlos Vargas (1) sobre isso:

«Mas há um ponto crítico – para mim o nó górdio da questão – que não vejo ninguém abordar. Mesmo que o veículo seja online a produção de informação tem um custo jornalístico e tecnológico que as assinaturas não suportam. Em Portugal a Google suga cerca de 90 por cento das receitas de publicidade online. Obtém receitas ligadas a conteúdos que na sua enorme maioria não produz – e não são seus. Com o advento da AI outras plataformas já estão a fazer pior e em maior escala. Pilham os direitos de autor e secam o mercado da publicidade. Sem se resolver esta aberração do mercado não haverá solução para os media. A crise hoje é no papel, amanhã será no online. É preciso pôr fim ao assalto generalizado a conteúdos – incluindo de informação – praticado pelas grandes plataformas electrónicas. Um assalto estranhamente consentido pelos responsáveis políticos das economias em modo de gestão neoliberal. Alguns governos, mesmo sendo liberais (Canadá e Austrália, por exemplo) meteram-se ao caminho para proteger do saque os operadores privados de media, nomeadamente a Imprensa. E já começaram a obter resultados. No Canadá o governo de Trudeau conseguiu que 2/3 das receitas da Google passem a ser entregues à Imprensa. Na Austrália, Google e Facebook já pagam direitos aos media tradicionais desde 2021. Na Europa está tudo a dormir.»

Há ainda outra questão: os jornalistas têm contribuindo e muito, para a destruição da sua profissão, é um facto. A maioria das chefias aliam-se às administrações. Só se preocupam quando chega a sua vez de serem despedidos. Há jornalistas que fizeram chacota ou desvalorizaram camaradas seus que faziam greve ou enfrentavam direcções pelos seus direitos e melhores salários.

Se o futuro (eu diria que isso já é o presente) é as pessoas informarem-se SÓ pelas redes sociais então será um futuro pobre, com uma democracia pobre. Ou até sem democracia. Nunca existiu tanta opinião pública como hoje. O problema é que a quantidade não quer dizer que seja de boa qualidade. Depender dos trending topics ou do número de visualizações para escrever e/ou gerir um jornal é uma nova forma de prisão.

Nota: Texto inspirado nos textos de Paulo Querido, Bruno Carvalho e Luís Ribeiro. Também em comentários muito relevantes que fui lendo no Facebook. Porque as redes sociais têm o melhor e o pior.

Nota Lateral: É muito contraditório para mim que Paulo Querido tenha estas ideias e depois participe em movimentos como Causa Pública. Serei só eu a notar a contradição?

Neste Blogue:

Leituras: A Fábrica de Cretinos Digitais, de Michel Desmurget

Leituras: Dez Argumentos para Apagar já as Contas nas Redes Sociais, de Jaron Lanier

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(1) No Facebook em 13/01/2024.

Última Actualização: 25/01/2024