O Brasil actual (4), por Anderson França

«Existem muitas lições a se tirar, todos os dias, do momento que o Brasil vive, depois de 4 anos de autoritarismo e golpe de Estado.

Não podemos esquecer que nós somos a geração que viu o Brasil fascista renascer e chegar ao poder. Então precisamos hoje, com calma, respirar e tirar lições disso.

Além do que eu disse antes, da esquerda entender a igreja evangélica como um movimento de base que dá respostas para aquilo que as urnas não dão, e preenches espaços vazios, e é mais acolhedora que movimentos de esquerda, pois pega o criminoso e o transforma em exemplo pros jovens, mas a esquerda alija e cancela pra sempre,

existe um outro tema que eu queria te mostrar, e é sobre um dos lemas da extrema direita.

Deus, Pátria e Família.

Mais precisamente Deus e família. Porque Pátria é um conceito tão ilusório que a própria extrema direita não sabe explicar, só empunhar bandeira. E por vezes, nem a do Brasil, mas a de Israel ou dos Estados Unidos.

Como não tenho estudo, só minha caminhada, quero partir de uma experiência pessoal, que sei que muita gente vai se identificar aqui.

Minha família foi o caos.

Meu pai abandonou a gente, quando voltou, quis matar minha mãe com uma faca. Minha mãe nos abandonou emocionalmente. Toda minha família, irmãs, primos e primas, viveram em conflitos, e até hoje não se falam. Brigas, violências, o impacto da violência externa, da pobreza. Tive uma irmã que de usuária de crack se tornou uma pequena traficante, e foi morta com pedradas de paralelepípedo na cabeça, debaixo do viaduto. Ela chegou a procurar nossa casa muitas vezes, mas era proibida de entrar, porque não era filha da minha mãe, mas de outra pessoa com quem meu pai tinha se relacionado, e também abandonado.

Tive amigos mortos pela PM. Amigos de infância, de adolescência. Alguns, caminho inverso: viraram PMs, foram mortos pelo tráfico. Meu primeiro amigo, de infância, quando eu ainda aprendia a falar, virou PM e foi morto na Penha.

Tenho amigo que foi morto queimado no morro, amigo com tiro no peito, tenho amigo preso por comandar o tráfico.

As mães deles também eram da igreja. E todo mundo que vive nesse contexto, de marido que bebe e bate, de família destruída, de caos, de ódio lá fora do morro, de racismo, de ódio a nordestino, todo mundo que vive sabe o que acontece.

Nós não temos mais nada de valor, senão uma família. Perder a família, é perder tudo.

Por isso a mãe, no morro, tem um valor diferente da mãe, no Leblon.

Tu já reparou em família branca da zona sul?

A mãe, pratica yoga e é vegana. Faz sessões de terapia, vai ao teatro, termina seu pós-doutorado em antropologia. Viajou pra França, é amiga de várias outras mulheres interessantíssimas, artistas, professoras, mulheres que sempre falam muito, tem sempre uma opinião, e uma empregada doméstica.

Ou é da baladinha. Do sambinha, da prainha.

O papai, arquiteto. Advogado. Herdeiro da incorporadora, segue os caminhos de vovô. Titio ajuda papai, ambos saem pra Búzios, pra pegar ondinha, todo ano papai monta aniversário com mamãe. Dinheiro e geladeira cheia não falta.

Ou papai é professor da UFRJ. Amigo dos esquerda, barba, muitos livrinhos na estante. Estabilidade, vida tranquila, quadros de algum pintor hype na parede.

Curioso é que, quando atravessei a ponte, pra lá, vi que muita gente era mais sozinha. Natal na zona sul é mais ou menos algo meia boca. Ninguém tem muita tradição, vai cada um pra um canto, esse negócio de família unida é coisa de suburbano. Aí os mais jovens logo cedo pagam de independentes, mas ainda recebem mesada, algo, aliás, que eu nunca vi nem comi, só ouço falar.

Família, pra esquerda, soa diferente. Soa demodê, soa antiquado. Soa tradicional demais, e a esquerda não pode ser tradicional, porque é tacanho.

Mas tem.

Acha demodê, mas tudo que tem é fruto do acúmulo de riqueza de gerações de pessoas brancas. Quando precisa de dinheiro emprestado, tem onde pedir. Tem pai vivo. Mãe com limite no especial. Casa própria.

E a esquerda decide ter um certo desprezo pela família pobre, que precisa se reunir, fazer churrasco, almoço de domingo. A esquerda acha tudo um episódio de “A Grande Família”, uma caricatura. Ou um “Vai Que Cola”. Debocha.

Mas não tem noção que, por trás dessa família, tem pessoas tentando segurar até o último fio de sanidade pra manter um núcleo que dê a eles um pertencimento. Porque ser favelado, pobre, negro e sozinho, é foda.

Por isso dizia o povo da minha rua, de primeiro, que o sonho era tomar “café da manhã de família de novela”.

Porque a família da novela sentava numa mesa. Com pão, queijo, suco de laranja. Tinham assunto. Tinham fome, e comida. Tinham futuro.

Reveja as novelas.

Aliás, você tem TV na sala, ou isso também é coisa de pobre pra você?

A outra coisa, além da família, é Deus.

É fácil ser ateu no Leblon. Quero ver ser ateu na Nova Holanda, uma das 16 favelas da Maré. Onde o helicóptero dá rasante às 6 da manhã, e tiro começa sem hora pra acabar, e deitados no chão da sala, pedimos que exista um Deus no céu, um divino, que nos livre da morte prematura e injusta.

Você também debocha da fé. Mas se eu perdesse a minha, ou minha mãe, ou as mães que conheço, perdessem a fé, seja em Deus, Jesus, Oxalá, qualquer coisa, sem fé elas não iam se sustentar.

Porque tem uma outra frase que ouvi, anos atrás.

A gente faz terapia na igreja, chorando e cantando.

A terapia do pobre é a religião.

A religião de rico é a terapia.

Portanto, quando nos Lula 1 e 2, os movimentos investiram pesado no estereótipo da feminista do suvaco cabiludo, ou do LGBT do cabelo rosa, ou da Pablo Vittar lacrando no Egito, ou da Marcha das Vadia enfiando a santa no toba,

as mães investiram em orar pelos filhos e filhas, pra que eles conseguissem um emprego na farmácia da favela, no caixa do mercado. Porque o medo que elas tinham era que a esquerda “transformasse” seus filhos tudo em sapatão, viado e piranha.

Medo infundado, você e eu sabemos.

Mas a esquerda, arrogante, nunca quis explicar isso pras mães. O PSOL nunca fez diálogo com as mães, mas com os filhos. Daí que, enquanto eles votavam no Freixo, elas votavam no Crivella.

E Crivella ganhou.

E porque eu apontei isso tantas vezes, a mesma esquerda me violentou, e disse que eu, e outros, trabalhamos pro Crivella, sujeito que eu nunca nem vi de perto.

Ocorre que o tempo passou, e a História deu a vocês o merecimento dos seus atos. Bolsonaro venceu, Freixo se desviou do PSOL, a esquerda se perdeu, ganhou por pouco, e agora não sabe me dizer quem vai entrar no lugar de Lula.

E vai ainda me dizer que é cedo pra isso, me desqualificando.

4 anos voam. E o Brasil de agora não quer saber de vocês.

A extrema direita poderá voltar muito mais forte que antes, porque ela, ao invés de vocês, percebeu que essa mãe precisa da sua família e de sua fé. Família e Deus.

Daí que ela vai em quem promete garantir sua família e sua fé.

Há muito, as eleições no Brasil não são decididas por ideologia, mas por valores que não constam nos partidos. Fé, família, comida, medo da pobreza.

Família é importante pro pobre. Pra mãe da periferia.

E a fé também é.

E se vocês não abraçarem isso, perderemos de novo.

E de novo. E veremos pessoas mal intencionadas no poder, usando esses valores, para destruir um país.»

Anderson França (1)

«A estratégia da extrema direita segue dando certo.

Porque Nikolas, Moro e outros não querem falar de comida pro pobre. Eles não tem projeto de país. Eles querem continuar pautando os jornais, a TV, a Internet e a esquerda.

Janones e Dino não são ingênuos. O que me assusta é eles não perceberem que cada grama de atenção que eles dão pra direita, ela transforma isso em quilos de capital político.

O grande debate do país deveria ser desenvolvimento econômico, indústria, vaga de trabalho, comida, habitação, futuro.

Mas o assunto do momento é sobre chupetinha. Pra Nikolas, que se veste como um palhaço, dizer que não tem deputado palhaço. Pra Moro inventar uma ameaça que nem o MPF acredita.

Assim, vamos perdendo tempo. E isso vai refletir nas urnas.»

Anderson França (2)

(1) No Facebook em 29/03/2023.

(2) No Facebook em 30/03/2023.