Pensando e relatando a vida há sessenta anos, por Manoella de Calheiros

(O pior é ler este texto e sentir que caminhamos para voltar para esses tempos.

O pior também é haver jovens a acreditar que era melhor viver nesses tempos.

O pior também é que passamos de ‘tudo se poupava” para ‘tudo se estraga rapidamente” (obsolescência programada).

O 25 de Abril cumpriu a sua promessa de dar uma vida boa às pessoas mas há décadas que essa promessa está sob ataque: já faltou mais para alguém a terminar. E o próprio PS “o melhor aluno da UE” dá sempre uma ajuda para esse fim.)

«Pensando e relatando a vida há sessenta anos

Nasci em 1955, na aldeia onde não havia, água corrente, electricidade e muitas vezes pouca lenha para o lume.

Tudo se poupava, os fósforos, o petróleo e as velas de estiarina.

As casas eram pequenas e os móvéis escassos, assim como as roupas e calçado que passava de uns irmãos para os outros, assim como os livros.

As maçãs, as peras, toda a fruta e verdura era a da estação, mas não havia carne e peixe, à parte de sardinhas, algum frango nas festas e a carne da salgadeira não se comia porque não se podia comprar.

As pessoas compravam meio quilo de massa ou arroz, um quarteirão de azeite e dez tostões de cevada.

Não havia, na maior parte das casas, quarto de banho, as fraldas tal como as de hoje não existiam e muita gente da minha geração foi criada com farrapos velhos até começar a andar.

A escola era uma casa velha, para onde mais de noventa por cento dos alunos iam descalços, com roupas pouco recomendadas e muitas vezes o cabelo sem pentear e a cara cheia de moncos, a casa de banho era debaixo da vinha e das laranjeiras do Manel Pessegueiro.

Muitas meninas não usavam cuecas (calcinhas), quando o frio era muito urinavam pelas pernas abaixo para aquecer os pés.

Os medicamentos eram escassos, inexistentes, diria eu, por estes lados.

Médicos? Os médico eram poucos, e a pagar, mas por aqui havia uma santa mulher, a Olivinha, que era a enfermeira, a parteira e aquela que nos curava as feridas e nos punha as injecções.

Férias? Nada disso existia, os poucos que tinham direito a elas aproveitavam para trabalhar e fazer pequenas obras em casa para não pagar a um jornaleiro.

Nós, desde tenra idade, eramos ensinados a trabalhar, pastar o gado, acarretar água e lenha, ir á “benda” e fazer tudo que os pais ou avós mandavam, a palavra “não”, não existia e o respeito e obediência aos mais velhos era obrigatório.

Os professores eram venerados, mesmo que depois de umas quantas reguadas o tema não fosse interessante.

A roupa era dividida, a do domingo e a da semana, não havia transgressões e a canalha não tinha prendas, no máximo um arroz de frango e um leite creme no dia do aniversário.

Carro? Carros eram os dos bois para ajudarem no transporte de tudo que uma casa de lavoura necessitava e todos da familia colaboravam nos trabalhos sazonais, a vindima, a desfolhada, malhar o centeio e o feijão ou ripar a azeitona.

Quem fazia os recados eram as crianças que como já disse eram ensinados a trabalhar desde bem pequenos.

A gente andava a pé e ía de umas freguesias para as outras fazer as coisas necessárias.

As mulheres, essas, ficavam prenhas e pariam quando chegava a hora, sozinhas ou com a ajuda da parteira, e neste tempo as familias tinham por norma um rancho de filhos.

Reformas? Ai reformas! Quem conhecia esta palavra, a reforma era trabalhar até cair, não havia subsídios de parto, de malandros nem de coisa nenhuma, era trabalhar até morrer.

Ah! E agora, agora que tudo mostra indícios de riqueza e de grandeza, em festas e banquetes, em casarios e carrões, a luxos e desperdicios obscenos, agora está tudo mal.

Nunca o mundo viveu como agora, com direitos, bem viver, desperdiçando e gritando que não se pode viver.

Mas fazem ideia o que é viver há 60 anos?

Afinal só quem vem lá de trás pode avaliar a sorte de nascer neste tempo.

Manoella de Calheiros

P. S. Seria pedagógico ensinar às novas gerações a saber e conhecer estes caminhos, embora alguns da minha geração se neguem a admitir que mijavam no penico.»

Adorável Casinha Velha (1)

(1) No Facebook em 18/01/2023.