Flexibilização do trabalho: um sonho molhado ou um pesadelo?, por Tiago Franco

«Sempre que ouço “liberalização do mercado de trabalho”, como se isso fosse o cálice sagrado do Indiana Jones, fico ligeiramente enervado. Em Portugal, por norma, essa grotesca resolução surge no programa da Iniciativa Liberal e, consoante as semanas e os pedidos das redes sociais, também aparece na gritaria perpetuada pelo Chega. Agora, mais recentemente, foi Milei, na Argentina, a levantar a bandeira da “liberdade” no trabalho com a liberalização de todo e qualquer direito.

Trocando por miúdos – expressão curiosa esta –, liberalizar o mercado pressupõe que se for mais fácil despedir, então também será mais fácil contratar porque o medo dos empregadores desaparece. Reparem como a narrativa liberal é sempre feita do lado do empregador. Ele tem medo, tem muitas regras para cumprir, e quando contrata tem dificuldade em despedir; ele, no fundo, quer gerar emprego, mas a lei não o permite.

Ora, meus amigos, o empregador não quer, não manda e não decide. O empregador, quando muito, tem o privilégio de recolher o lucro do trabalho dos outros; portanto, a história tem que ser vista na perspectiva de quem trabalha, não de quem arrecada.

Prédios vazios são só prédios vazios. Com ou sem dono. Já prédios com gente a trabalhar lá dentro é que passam a ser empresas; portanto, é bom que percebamos, de uma vez, onde está a força no mundo do trabalho. Está em quem gera, não em quem recolhe os dividendos.

Flexibilizar o despedimento e enfraquecer sindicatos, como defende a direita de uma forma geral, não traz riqueza ou progresso para ninguém. Quando muito, cria uma selva onde as diferenças entre as diferentes classes profissionais se acentuam.

Há anos que trabalho num mercado liberalizado. Com regras, é certo, mas onde o despedimento e a contratação são relativamente simples. Um mercado com poucas pessoas, com elevado nível de formação, e com uma economia forte que gera muito emprego, assente nas empresas multinacionais e em milhares de PMEs tecnológicas. Esta é uma realidade (Suécia) que começa com um ensino verdadeiramente universal, base de tudo, e que continua com imposições fortes para salários mínimos que começam num nível de dignidade aceitável. Na verdade, não existe, sequer, um valor mínimo. Mas ninguém trabalha um mês por menos do que 2.000 euros.

No fim desta história, há mais empregos do que pessoas e, dessa forma, é possível despedir e contratar todos os dias porque há sempre falta de alguém na porta ao lado. Esta não é a realidade portuguesa e não será nas próximas décadas, portanto, tentar reproduzir algo semelhante serviria apenas para mais abusos sobre os trabalhadores.

Mas, já agora: mesmo em países de Primeiro Mundo, e ao fim de 18 anos de contratos temporários, deixem-me dizer-vos, claramente, que a selva laboral jamais será a solução seja para o que for.

Já perdi a conta aos empregadores que tive e aos colegas com quem troquei ideias. Tenho que ler o curriculum para me lembrar por onde andei e o que fiz. Em todos, sem excepção, nunca tive mais do que meses de estabilidade. Não é fácil planear uma vida com contratos de seis meses. É muito complicado tomar decisões familiares e assumir riscos sem saber o que acontecerá no ano seguinte.

Nos últimos dois anos resolvi trabalhar com uma empresa chinesa. Tem as suas vantagens, não o nego, mas o ritmo de trabalho e a instabilidade é diária. Hoje estão a traçar metas para 2025, no dia seguinte estão a despedir 60 pessoas e, um dia passado, resolvem afinal despachar mais 40. Uma pessoa de meia-idade, como é o meu caso, anda por ali a pensar quando é que a espada deixa de passar ao lado e finalmente encosta em nós. Todas as semanas vejo empregos no Linkedin e preparo planos de saída para o caso de os chineses apontarem ao oásis luso. E a Lagarde não quer saber de flexibilização laboral; ela quer é ver os meus 5% de juros no crédito à habitação a baterem no Banco Central todos os meses; o resto não é problema dela.

Todos os dias há um colega que anuncia que se vai embora e a maior parte das equipas naquela empresa foram afectadas, reduzidas ou, como eles dizem, reestruturadas. A excepção foi de facto a equipa portuguesa que, aos olhos dos chineses, deve manter-se intacta. Para isso, foram necessários sete meses sem fins-de-semana, Verão sem férias e uma disponibilidade total que, em última análise, nos vai queimando um a um.

Portanto, nada que seja saudável ou sequer possível de manter. E mesmo assim, com este esforço todo e com os despedimentos que vemos em redor, temos todos a consciência de que o nosso lugar só está seguro até ao Verão de 2024. Um luxo: quase sete meses para imaginar como seria uma vida estável.

Por outro lado, os despedimentos colectivos na Suécia passam pelos sindicatos – é bom dizê-lo. As negociações duram normalmente uma manhã, julgo que devem ser feitas entre um bolo e um café (a famosa fika), e consistem essencialmente em dizer ao sindicalista de serviço onde é que ele tem que assinar. Os sindicatos suecos servem apenas para coleccionar cotas mensais e dar um dízimo mensal, durante três meses, em caso de despedimento. São mais inúteis do que um par de barbatanas num bidé.

Em resumo, os trabalhadores dos tal mercado liberalizado são deixados entre duas hipóteses: trabalhar até rebentar, abdicar de tempo de lazer com a família, danificar a saúde mental e manter o emprego por mais uns tempos ou, ser apenas normal e aceitar o despedimento como uma parte normal do percurso profissional.

Isto é o mercado flexível e liberal num país de Primeiro Mundo. Agora imaginem num país com índices menores de desenvolvimento e de baixos salários.

Como há pobres que ainda aplaudem e sonham com isto, da Argentina a Portugal, é algo que jamais perceberei.»

Tiago Franco (1)

(1) Opinião em Página Um, 28/11/2023.