#venderainfâncianoinstagram, por Bruno Nogueira

«Os pais, sempre os pais, a ficarem deslumbrados com a pornografia que é usar os filhos, ela é tão bonita que tenho de partilhar com o mundo, não aguento ter esta cara laroca só para mim, a venderem a criança a fazer tudo, a tentar ser criança, a não perceber porque é que a mãe tem cara de iPhone.

Sabem que mais? Bardamerda mais os vídeos dos vossos filhos menores no Instagram, mais as crianças com hashtags de marcas no focinho, tão pequenas que ainda nem conseguem perceber o festival de lama em que estão metidas. Nasceram já com a cara a ser esfregada no mundo para toda a gente ver, olha que lindo ele a comer a primeira papa desta marca, olha que amor ele a sair da escola com aquela roupa, olha ele a fazer uma birra, que menino feio, não come a massa toda, e o número de seguidores a subir; que já se sabe que o que interessa é seguidores, a privacidade e o anonimato das crianças que se lixe, desde que uma marca de roupa ou de cremes, ou do caralho que os foda a todos venha esguichar dinheiro. Ai, é para pagar a escola do menino, ai é para ele viajar comigo, ai ele ainda me vai agradecer, então não vai, durmam com a desculpa que quiserem, a criança não pediu parcerias, só tem aquilo que vocês lhe derem, se derem uma escola pública é na escola pública que está bem, ao menos não anda na rua com dedos a apontarem para ele, e conversas em surdina, olha é o filho daquela, que ainda no outro dia fez uma birra porque não comeu massa, ai que birra tão feia que fizeste no outro dia, não podes fazer birras tão feias, tens de ser um menino bem-comportado.

A pobre da criança já a ter que ser pública quando ainda nem sequer sabe ser privada, nem vai saber, porque a auto-estima dos pais precisa de seguidores, e de mensagens calorosas a dizer “a sua filha é tão bonita, que sorte que você tem, adoro vê-la, mostre mais vezes”, e os pais, sempre os pais, a ficarem deslumbrados com a pornografia que é usar os filhos, ela é tão bonita que tenho de partilhar com o mundo, não aguento ter esta cara laroca só para mim, a venderem a criança a fazer tudo, a tentar ser criança, a não perceber porque é que a mãe tem cara de iPhone, não tem dois olhos como as outras, tem uma lente e um flash sempre a olhar para ela, porque é que a minha mãe não me abraça com dois braços? Sempre que olham para os pais lá estão eles a segui-los com lentes assustadoras, sem empatia no olhar, porque o olhar está a ver o desgraçado do filho através do ecrã, vê-lo ao vivo dá menos dinheiro, e deixa o ego frio. A estupidez humana iluminada por um ecrã de telemóvel. O filho é meu, faço o que quero. Tem juízo, foda-se, o que é teu és tu, o resto não é de ninguém. Ai mas ele gosta muito dos vídeos. Ele gosta é da real puta que vos pariu, ele também gosta de quatro tabletes de chocolate por dia se lhe enfiarem no focinho, ou de sete Coca-Colas, eles sabem lá, estão a aprender a ser gente com donos de circo. Se lhes derem cocaína também é possível que gostem, ou andar em tronco nu no inverno. Ah, mas as Kardashians também fazem, e agora? Agora? Agora nada, seus burros de merda. As Kardashians se quiserem compram uma escola só para os filhos não terem de aturar outras crianças com ranho na tromba que gozam com elas. As Kardashians com um bocadinho de sorte compram a cidade onde vivem e depois é que ninguém olha nem comenta, percebem a diferença? São tão estúpidas como vocês, mas têm tanto dinheiro que quase parece que ser burro as magoa menos. Isto está tudo fodido, é o que vos digo. Tudo fodido. Não me venham com a conversa de “são outros tempos”. São sempre outros tempos, olha que novidade do caralho, senão o mundo tinha parado. O anonimato é a coisa mais preciosa com que se nasce, agora ou antigamente, e dão-lhes cabo disso logo à saída do corpo da mãezinha, com uma fotografia ainda no hospital, o pobre bebé sem fazer ideia de que mundo é este, com olhos de espanto pelo mundo, o cordão umbilical ainda a alimentar o corpo, a mãe de olhinhos fechados a chorar, com uma touca na cabeça e cara de parva, o médico a dar três pontos na mãe, e o pai a fotografar a menina a ser pesada, três quilos e duzentos gramas de amor, é a legenda da fotografia no Instagram, para as marcas de coisas para bebés ver se acordam. A criança nasce anónima e só deve deixar de o ser quando tiver idade para decidir.

Ela nasceu dos vossos corpos, mas não é vossa. O máximo que podem fazer é dar amor e não estragar, porque daqui a uns anos é para devolver ao mundo. Mas até lá, quem é que as protege do Instagram dos pais? Onde é que estão os adultos para tomarem conta destes adultos? Não há parceria que pague vender uma infância em stories. Já perdi amigos com esta merda, para que saibam. Amigos e amigas que eu vejo espetarem o focinho da criança a tomar banho, crianças que pedem para a mãe parar de filmar e mesmo assim a mãe põe nas redes sociais, porque os seguidores estão com fome, e a menina que se aguente, que a vida é mesmo assim. Como é que se atrevem a atirá-los aos leões? Ide-vos foder todos, mais a vossa bolha de egoísmo e de deslumbramento. Oxalá as crianças, que vão ser adultos – nunca se esqueçam disso – vos filmem a cagarem-se todos nas fraldas com 80 anos, ou com comida a cair-vos pelo queixo, todos fodidos dessa cabeça, a não saberem qual o nome do vosso neto, e eles a filmarem “olhem para esta minha mãe, nem sabe o nome da neta, tão apagadinha que está aquela memória”. E vocês com o mesmo olhar que tinham os vossos filhos quando eram filmados por eles, perdidos sem saber o que está a acontecer, a sorrir para não se sentirem tão sozinhos do lado de lá da lente. E eles a explodirem de likes, e de seguidores, e de parcerias, e do raio que vos parta. São outros tempos, dizem eles. E as crianças que se amanhem com essa frase. Pois são, são tempos fodidos para quem é filho deles. Filmem e guardem, entretenham-se, vão ao cinema, ao teatro, olhem uns pelos outros, façam o que quiserem, mas deixem as crianças em paz. Filmem e guardem, que elas quando crescerem logo decidem. Ai calma, há problemas maiores. Pois há, há problemas muito maiores, mas muitos deles nascem de problemas pequeninos como este. A criança não tem culpa, foda-se, é só uma criança. Deixem-na ser anónima, por amor a ela. Sejam adultos, façam-se homens e mulheres. E no meio disso tudo sejam pais, que já custa muito.»

Bruno Nogueira (1)

(1) Opinião na Sábado, 19/01/2022.