Depois de Melilla e de vendermos sarauís e curdos, o que sentimos pelos ucranianos é hipocrisia, por Daniel Oliveira

«Marrocos vendeu a solidariedade com a Palestina em troca do reconhecimento pelos EUA da ocupação do Sara Ocidental; Espanha vendeu os seus deveres para com o Sara Ocidental em troca da barragem sem pruridos humanitários de migrantes; Suécia e Finlândia venderão os curdos à Turquia para entrarem na NATO. E há quem se indigne com o cinismo de Kissinger. Se existem “valores europeus”, são para consumo da casa.

Aproveitando o embalo do reconhecimento da sua soberania sobre o Sara Ocidental por Donald Trump – que a trocou pela normalização das relações de Marrocos com Israel –, Rabat aumentou a pressão sobre Madrid. O seu argumento negocial era não controlar a entrada de migrantes. E tudo se tornou ainda mais difícil para Pedro Sánchez com o internamento do líder da Frente Polisário e presidente da República Árabe Sarauí Democrática, Brahim Gali, por estar infetado com covid. Madrid tinha de saber que “há atos que têm consequências e têm de se assumir”, explicou a embaixadora de Marrocos em Espanha.

A pressão sobre Ceuta e Melilla foi a arma usada por Marrocos. PP e Vox usaram a entrada “descontrolada” de imigrantes contra o governo, não hesitando em promover o caos nos territórios, e os socialistas recordaram que a falta de determinação é o principal traço identitário desta família política em toda a Europa.

Madrid, antiga potência administradora do Sara Ocidental, deu o primeiro passo para um reconhecimento da soberania de Marrocos sobre o território, com uma vaga promessa de autonomia vinda de uma ditadura. Numa carta ao rei Mohamed VI, Pedro Sánchez declarou que o plano marroquino de autonomia do Sara Ocidental era “a base mais séria, realista e credível para a resolução do diferendo” que, recorde-se, dependia de um referendo nunca realizado. Num ápice, aproveitando o ruido da guerra da Ucrânia, traiu a posição histórica do seu partido e da diplomacia espanhola. E até abriu uma nova frente de conflito com a Argélia, aliada da Frente Polisário e uma das principais fornecedoras de gás da Península Ibérica. A direita, que ajudou Marrocos a entalar o governo usando Ceuta e Melilla para o fragilizar, também protestou.

Em troca da cedência, Espanha conseguiu externalizar para Marrocos a defesa das suas fronteiras. O retrato de Dorian Gray foi-lhe revelado agora, com os efeitos monstruosos do seu cinismo. Face ao avanço de centenas de imigrantes que queriam entrar em Espanha, 1500 agentes marroquinos concentraram-se na zona na região de Nador. Dispararam uma infinidade de granadas de fumo contra a multidão. No meio do caos, do pânico, da violência e do desespero para entrar, 37 seres humanos agonizaram até à morte, aos olhos de todos os que não desviaram a cara, asfixiados ou esmagados junto à vala ou depois de caírem da cerca que a limita, na fronteira entre Marrocos e Melilla. Migrantes feridos não receberam auxílio das autoridades espanholas e foram agredidos por polícias marroquinos que, entrando em território espanhol, os fizeram regressar a Marrocos.

Como disse Helena Maleno, porta-voz da Caminando Fronteras, “as relações entre Marrocos e Espanha estão manchadas de sangue.” Já houve mais pessoas a tentaram cruzar a fronteira, nunca tantas morreram. Mas Sánchez não se esqueceu de agradecer a “extraordinária cooperação” do Reino de Marrocos e o comportamento da sua polícia. Deixo aqui o extraordinário resultado, que não abriu telejornais.

Para não se perderem no meio da troca pornográfica de favores, recapitulo: Marrocos vendeu a solidariedade com os palestinianos em troca do reconhecimento pelos EUA da sua ocupação do Sara Ocidental e Espanha vendeu os seus deveres para com o Sara Ocidental, enquanto antiga potência administrante (semelhante à siglação que tínhamos com Timor-Leste, nos anos 90), em troca da barragem sem pruridos humanitários de qualquer pessoa que tente entrar por ali na Europa.

Mas não acaba aqui. Parece que a Suécia e a Finlândia se preparam para vender os curdos à Turquia, mesmo que de forma aparentemente vaga (mas o princípio de cooperação na opressão dos curdos passou a estar em cima da mesa) para entrarem na NATO – o próprio ocidente os abandonou depois de os ter usado contra o Estado islâmico. Não deixa de ser irónico que a adesão à NATO, esse espaço de valores, implique a cedência destes países numa tradição de solidariedade que lhes valeu uma influência internacional superior ao seu peso económico ou militar.

Perante todo este comércio, ainda há quem se indigne com o excesso de cinismo da realpolitik de Henry Kissinger.

Passei os últimos três meses a defender os nossos deveres para com a resistência ucraniana à ocupação do seu território. Que há um ocupante e um ocupado e não pode haver hesitações morais perante este facto, disse-o vezes sem conta a alguma esquerda. Acho que depois destes parágrafos quem se atreva a dizer que é isso que move a Europa deve esconder-se num buraco com vergonha. A Europa está-se nas tintas para o direito à autodeterminação dos povos. Venderia qualquer povo por um polícia na sua fronteira ou uns litros de combustível. Não existe essa coisa de “valores europeus”. E se existe, é só para consumo da casa. É uma fantasia com que alimentamos os nossos ancestrais complexos de superioridade.

Passei os últimos três meses a dizer que esperava, sinceramente esperava, que a forma como abrimos os braços aos ucranianos fosse uma aprendizagem. Um passo para olharmos de outra forma para o sofrimento dos outros, dos que fogem da guerra, da miséria e da opressão. Que comoção sentiram, por essa Europa fora, com a pilha de corpos mortos na fronteira sul da Europa? Quantas instituições públicas se disponibilizaram para fazer alguma coisa? Quantas vigílias? Quantas associações, a não ser aquelas que há anos, sem se moverem ao sabor das modas, são consequentemente solidárias, se ofereceram para ajudar estas pessoas? Que deveres os europeus sentem ter perante estas mortes?

Não venham dizer que é porque a Ucrânia está mais próxima de nós. Lviv fica a 3600 quilómetros de Lisboa, Melilla a 940. A proximidade é outra: os ucranianos são brancos, loiros, nutridos, cristãos e parecem ser como nós (ou como nós gostaríamos de ser). Em princípio, devem sentir dor como nós, ao contrário dos sub-humanos subsarianos. Podem transformar esta diferença perante o sofrimento de uns e de outros em empatia ou proximidade. Tem o mesmo nome de sempre: racismo.»

Daniel Oliveira (1)

Comentarium: É impressão minha ou a Europa e os Estados Unidos estão cada vez mais parecidos com a Rússia de Putin?

(1) Opinião no Expresso Diário, 01/07/2022.