(Aviso: O título é da minha responsabilidade.)
«O Parlamento Europeu pode não servir para nada, mas dos debates de campanha podem extrair-se mensagens importantes. No de ontem, ouviram-se os dois candidatos dos dois partidos que nos têm governado a elogiarem as regras orçamentais europeias que nos são impostas por Bruxelas. Os elogios não poderiam ser mais esclarecedores. Do que estamos aqui a falar é do tecto de 3% do PIB para o défice orçamental e da ameaça de sanções para países com dívidas públicas que excedam os 60% do PIB caso aquele limite seja excedido. É a imposição destas regras, via “poupanças, que condena o nosso SNS, a nossa Escola pública, os nossos serviços públicos e todos os seus profissionais ao declínio ininterrupto desde a adesão ao euro os três primeiros e ao empobrecimento, igualmente em contínuo, aos últimos.
Este desinvestimento filho destas regras tem como consequências a substituição da prestação de serviços que, por serem sempre incomparavelmente mais baratos quando são prestados dentro do SNS com meios do SNS, deveriam sê-lo, por serviços adquiridos ao negócio da Saúde privada, muito mais caros.
As regras começam por proibir a substituição de equipamentos velhos por equipamentos novos quando estes chegam aos limites impostos pela duração da sua vida útil, sempre largamente excedida. As aquisições de equipamentos pesam no défice. As reparações vão-se tornando cada vez mais frequentes, demoradas e caras. As regras voltam a proibir a sua reparação quando os equipamentos avariam. As reparações pesam no défice, quanto mais caras, mais pesam. As listas de espera e as aquisições de bens e serviços a privados vão resolvendo provisoriamente o que poderia ser resolvido em definitivo se a ideia não fosse a de condenar o SNS a uma coisa que deixa insatisfeita cada vez mais gente , a privatizar quando a maioria o sentenciar. Um público que vai ficando cada vez mais caro porque recorre aos privados mas que não satisfaz pelo que tem que se esperar e desesperar nunca satisfaz.
Da mesma forma, as mesmas regras proíbem actualizações de grelhas salariais e de melhoria das condições de trabalho oferecidas aos profissionais de saúde e empurram-nos para um sector privado com cada vez mais facilidade em recrutar à medida que os salários se desvalorizam e as condições de trabalho se degradam. Os salários e as condições de trabalho não são melhorados porque pesam no défice. vai-se remediando a falta de profissionais recorrendo ao privado. O público vai ficando cada vez mais caro e prestando um serviço cada vez menos satisfatório, com esperas de mais de 24 horas em urgências caóticas. Culpam-se os profissionais de saúde na comunicação social e onde seja. Chama-se-lhes “corporações”, das poderosas, nada a ver com corporações frágeis, como tal, acarinhadas, como as dos sectores financeiro, da energia e dos combustíveis. A insatisfação sentenciará a privatização desejada quando o caos exceder os limites do tolerável.
Regressando ao debate de ontem, os dois candidatos não foram confrontados com as consequências das regras que elogiaram. Nunca são. Por isso as tais regras se tornaram tão populares. Eles sabem que ganham votos se as elogiarem. Os portugueses são o povo da Europa que mais confia em políticas europeias que nunca ou muito raramente são questionadas de forma aberta, sistematizada e com a repetição própria de um amplo debate público. Será que um país como o nosso, que viu a sua dívida pública quase duplicar quando, por uma motivação bastante óbvia, o de criar condições para impor a agenda política da troika que aterrou na Portela pouco depois, o BCE se negou a intervir numa escalada de juros que chegou aos 17% logo a seguir à chamada crise das dívidas soberana de 2008, está proibido de ter um Serviço Nacional de Saúde e serviços públicos universais e de qualidade? As regras europeias respondem que sim. Eles elogiam as regras europeias e, para cúmulo, ainda ganham votos ao fazê-lo. E o grande vencedora do debate foi a ideia quase geral de que as regras europeias fazem muito bem ao país.»
Filipe Tourais (1)
(1) No Facebook em 29/05/2024.
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