Bater na vaca leiteira, por Daniel Oliveira

«Tratamos mal os imigrantes. Nas estufas, nas casas lotadas da Mouraria, na AIMA, interessa é quanto se pode tirar desta vaca leiteira. Dão 1,6 mil milhões de lucro à segurança social, são 10% de um país envelhecido e 13% da população empregada e estão a repovoar o território. São explorados pelas máfias, pelo patrão, pelo senhorio e pelo Estado. E, quando são espancados, a culpa ainda é deles

Quando o SEF não garantia dividendos políticos, ninguém, para além das associações de apoio aos imigrantes, ligava ao que lá se passava. Mas sempre houve filas, nunca houve interpretes e os imigrantes sempre foram tratados com o desrespeito que a autoridade do Estado oferece aos mais vulneráveis, que não conhecem ninguém e tudo temem. Nada disto é de hoje. Por isso, não foi apenas por causa do abuso levado ao extremo, que tirou a vida a um ucraniano, que o SEF foi extinto. Foi extinto porque, se nenhum português tem de ir a uma esquadra para tratar de papelada, nenhum imigrante tem de o fazer junto de uma força policial. Separar funções policiais, administrativas e de integração não é simbólico. É impedir que a cultura própria às forças policiais se estenda a todas as relações dos imigrantes com o Estado, fazendo de cada um deles um suspeito e da imigração uma questão de segurança.

Mas não chega tomar a decisão certa. As coisas vinham mal da pandemia e nos dois anos seguintes, numa transição preparada com os pés e feita aos bochecos, acumularam-se processos e os imigrantes ficaram no limbo da ilegalidade tácita. Além dos atrasos nos reagrupamentos familiares, essenciais para a integração, as manifestações de interesse (dependente da entrada legal como turista, contrato de trabalho e comprovativo da segurança social) para conseguir a primeira autorização de residência, que costumavam ter um período de espera entre os três a seis meses, acumularam-se até atingir dois anos. Saídos da pandemia, houve, perante a indefinição em relação ao futuro, uma espécie de “greve de zelo” do SEF.

Para limpar ficheiros ou para dar um sinal de que as coisas estavam finalmente a andar, a AIMA, que substituiu as funções administrativas do SEF, resolveu chamar de uma só vez todos os que tinha entregado a sua manifestação de interesse entre maio de 2022 e maio de 2023, entupindo os serviços e a plataforma digital. E, com a sensibilidade do burocrata, determinou o prazo de dez dias para quem esperou dois anos, pedindo, nesse prazo, 400 euros. O dinheiro não é novidade. Este processo, que pode ter resposta negativa, custa, para quem não for dos PALOP ou do Brasil, 250 euros, a que podem acrescer multas pelo tempo que estiveram ilegalmente no território, atirando o valor para 500 euros ou mais. Não percebi como se chegou aos 400 euros, mas todos conseguimos intuir que, para os conseguirem em dez dias (o prazo já foi alargado), muitos foram pedir emprestados a quem terão de pagar a dobrar.

Apesar de ser politicamente conveniente, não vale a pena ficar pela AIMA. Tratamos mal os imigrantes. Nas estufas, nas casas lotadas da Mouraria, nos serviços do Estado, a única coisa que nos interessa, enquanto comunidade, é quanto podemos tirar desta lucrativa vaca leiteira. Os imigrantes dão 1,6 mil milhões de lucro à segurança social, são 10% de um país envelhecido e 13% da população empregada, trabalham nas áreas mais exportadoras e estão a repovoar o território. São explorados pelas máfias, pelo patrão, pelo senhorio e pelo Estado. E, no fim, ainda servem de bombo da festa. Mesmo quando são vítimas de ataques violentos, acabam sempre culpados.

No Porto, um grupo de encapuçados arrombou a porta da casa de imigrantes para os espancar. Qual foi o debate? Os problemas de segurança que as “portas escancaradas” aos imigrantes nos trazem. Em Lisboa, houve uma denúncia de que um grupo de crianças do 1º ciclo terá espancado uma criança nepalesa, gritando “vai para a tua terra”. No conteúdo da habitual crueldade das crianças, elas repetiriam o que ouvem em casa, os pais repetem o que ouvem na televisão e redes e ali repete-se o que foi legitimado por eleitos. A fera está à solta e a culpa não é só de Ventura. A presidente da Junta de Arroios, que tem abusivamente dificultado a obtenção de atestado de residência indispensável para a integração dos imigrantes, na freguesia mais cosmopolita do país, escolheu dizer, sobre estes episódios, que a imigração tinha um impacto negativo e causava uma sensação de insegurança nas populações. Antes do Ministério da Educação e outras instituições terem levantado dúvidas sobre o rigor de uma história que teve uma associação social da Igreja como fonte e parece, afinal, mal contada, a culpa já era das alegadas vítimas.

Não tem de haver tabus no debate sobre a imigração. Ela sempre trouxe conflitos e tensões. Que o mau funcionamento do Estado e o populismo de oportunistas agudizam. Mas se Portugal tem um problema com a imigração ele é a insegurança dos imigrantes. É a sua exposição à exploração, ao abuso e à violência. E isso não se resolve fechando as portas, para que entrem ilegalmente pela janela, ainda mais desprotegidos. Resolve-se legalizando, integrando e defendendo os direitos dos que mais produzem neste país. E tendo a coragem de recordar aos que, lucrando com o seu trabalho, os querem longe da vista, que ninguém imigra para países pobres.»

Daniel Oliveira (1)

(1) Opinião no Expresso, 17/05/2024.