Salvem a Democracia: os orçamentos e o jogo viciado, por Filipe Tourais

(Aviso: O título é da minha responsabilidade.)

«Depois do mesmo ter acontecido após a demissão de António Costa, a cena repete-se com a demissão de Miguel Albuquerque, na Madeira. Impulsionada pelo zelo de Marcelo, é ideia consensual entre os obreiros da Praça do Comentário que é crucial que a Assembleia, agora a Regional, apenas seja dissolvida depois de aprovar o Orçamento respectivo, como se fizesse alguma diferença que um Governo em gestão corrente governasse em duodécimos e como se não houvesse Orçamentos rectificativos.

Ora, um Orçamento, quer o Orçamento do Estado, quer o Orçamento Regional, mais não é do que a tradução numérica do financiamento das políticas do Executivo respectivo até aos limites aprovados pelo Órgão nacional ou regional. Se o que importar for apenas que o documento seja aprovado preveja o que preveja, não há aqui nem políticas de esquerda, nem políticas de direita, há apenas o Orçamento, que esmagará quaisquer diferenças que, por hipótese meramente académica, pudessem surgir na governação que faça o enorme favor de o executar.

O Orçamento é aquele, nem mais nem menos do que aquele. As políticas, invariavelmente de direita por acentuarem a concentração da riqueza nos de cima, são aquelas e apenas aquelas, com diferenças de pormenor independentemente dos rótulos “de esquerda” que possam colar-lhes, pré-concebidas muito antes do espectáculo parlamentar proporcionado pelo teatro que antecede a aprovação de um documento garantidamente aprovado à partida a bem da santa estabilidade que vai corroendo salários, serviços públicos e as vidas da maioria, para que o empobrecimento e a ruína aprovada garanta que as portas da fortuna continuem escancaradas para uma elite restrita sua protegida. Opções políticas não são necessariamente corrupção.

É mais do que espectável que a política definida nestes moldes de jogo viciado comece inicialmente por cansar e por dizer cada vez menos aos de baixo, que estes vão progressivamente revendo o valor que reconhecem a uma democracia que lhes exige votos sem lhes retribuir em qualidade de vida e em desenvolvimento do país, até que, um belo dia, a revolta se instala, não necessariamente da forma mais racional, necessariamente da forma menos racional se houver uma sucessão de casos que alimentem uma desconfiança pré-existente num regime que deixou de saber e de se preocupar em dar-se ao respeito , instalando-se uma fúria com as marcas do ressentimento, do instinto e da ignorância.

De pouco servirá tentar explicar a um povo furioso que foi a sua percepção de corrupção , que é apenas uma percepção e não corrupção no concreto, o que fez afundar Portugal ainda mais um lugar no índice, lá está, de percepção de corrupção da organização Transparência Internacional. Não vai querer ouvir nem fazer o mínimo esforço para perceber que corrupção e percepção de corrupção são coisas completamente distintas. E também não será nada fácil encontrar credibilidade suficiente para se fazer ouvir em nenhuma figura de um regime que alimenta essa mesma desconfiança , um regime que não se vê a fazer nada de percepcionável para combater efectivamente a corrupção e para reformar uma Justiça que, como se já não bastasse a demora de 10 anos a julgar uma figura que a esmagadora maioria vê como corrupto, ainda permite que a loucura envaidecida de um juiz tente inviabilizar o seu julgamento sem que nada lhe aconteça. A democracia assim fragilizada tem boas razões de queixa dos democratas que a apodreceram. Será a hora dos oportunistas.

A menos que os democratas finalmente percebam que têm que governar para esse tal povo que acusam de populismo quando exige melhores condições de vida e uma Justiça que seja efectivamente um pilar da democracia e não uma capa protectora de poderes ocultos que, se a democracia ainda for coisa que tenha algum valor, de forma alguma é sua função amparar. [1] “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.” [2] “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.” A Constituição da República Portuguesa não está suspensa nem foi revogada. Os seus dois primeiros artigos, tal como todos os restantes, continuam em vigor.»

Filipe Tourais (1)

(1) No Facebook em 31/01/2024.