O garrote das “contas certas” aperta o SNS, por Filipe Tourais

(Aviso: O título é da minha responsabilidade.)

«O guião. Mais uma vez, a comunicação social dá destaque a uma não-notícia e desata toda a gente a comentá-la. A visão da árvore assim sobrepõe-se à da floresta. O óbito da idosa com doença terminal em Penafiel, que morreria sempre, independentemente dos cuidados que lhe fossem prestados, não vale uma linha a comentá-lo. O problema do SNS não é aquela morte. Eventualmente, serão muitas outras mortes, não noticiadas por ser difícil relacioná-las com a tragédia de esperas sofridas e intermináveis que se vive em todas as urgências do SNS. A idosa recebeu pulseira laranja na triagem, teria que ser atendida em 10 minutos e esperou horas. Aqui é que está o problema, não daquela pessoa, de qualquer um que aterre numa urgência sem o mesmo diagnóstico de morte iminente. A espera torna qualquer morte iminente. O garrote das “contas certas” apertou demasiado, produzindo o caos ao qual apenas o pateta do Ministro e quem o leve a sério dá ares de normalidade.

Falta de tudo no SNS. Pessoal médico e de enfermagem, técnicos de diagnóstico, equipamentos médicos, nem os computadores que os médicos usam para consultar processos e passar receitas escapam. Uma médica que me atendeu há umas semanas, em desespero após uns bons 10 minutos a tentar que o computador desempancasse e lhe permitisse passar uma receita, desabafou que já se daria por satisfeita se lhe atribuíssem um computador deste século. As horas que se perdem nestas esperas ficam muito caras em salário e em sofrimento dos que não estão a ser atendidos porque o médico está a lutar com o fóssil da apregoada revolução digital em modo “poupança”.

Depois leio para ali que António Costa disse que lutará até ao fim pela descentralização na Saúde. A sério? Os Centros de Saúde deixam 2 milhões sem médico de família. Não adianta bater à porta. O utente dirige-se à urgência do hospital de terceira linha. Aí também não tem sorte nenhuma. O mesmo para o utente que tente ser atendido no hospital de segunda linha. Liguem para o SNS 24, dizem-lhes. Pois sim. Horas de espera. Por favor, não desligue. E calma, está tudo a funcionar em rede.

Basta passar pelo estacionamento de qualquer hospital de primeira linha para ver a rede em todo o seu esplendor nos letreiros pintados nas carroçarias que identificam a proveniência das ambulâncias. Os utentes que seriam atendidos nos hospitais de segunda e terceira linha são encaminhados para os de primeira linha, que não têm meios nem pra atender os seus utentes, quanto mais para atender a avalanche de utentes que viajam até ali, em muitíssimos casos, bem mais de 200 quilómetros. Estranho seria que as esperas não ganhassem estatuto de vergonha nacional diária. A rede. A descentralização da Saúde. O maior reforço de verbas para a Saúde desde não sei quando. Tretas.

E a comunicação social a batalhar para obter reacções à morte da idosa que morreria sempre, independentemente dos cuidados que lhe fossem prestados. Uns dizem que está tudo bem, com pequenos desvios. Outros aproveitam para dissertar sobre as vantagens dos sectores privado e “social, os impostos e assim”. Outros ainda, na impossibilidade lógica de relacionar o caso com a corrupção à qual reduzem tudo, para anunciar mais um inquérito parlamentar ou coisa parecida em modo gritaria.

O debate sobre as soluções que cada um propõe para revitalizar o SNS que deixaram morrer na ganância de tudo pouparem que se faça já com o resultado final das conquistas de votos seguindo o guião. Também fica em lista de espera. Não há urgência nenhuma. O problema são os votos, as “contas certas”, a dívida. Ninguém arrisca levantar questões sobre os dois últimos para não perder nem um dos primeiros. Porque ninguém pergunta. Ao certo, ao certo, o que são “contas certas”? “reformas estruturais”, ainda por cima “necessárias”? Necessárias por quê e para quê? Quanto custam ao país as “poupanças” em salários e em investimento público? A comunicação social deixa as perguntas fora do seu guião.»

Filipe Tourais (1)

Ver Também:

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“Para salvar o SNS é preciso, em primeiro lugar, acreditar no SNS” ( Manuel Pizarro)

(1) No Facebook em 03/01/2024.