CPI, o show de Ventura, por Tiago Franco

«Pergunta-me o miúdo, um destes dias, provavelmente depois de um episódio da Netflix ou de um tik tok de um influencer qualquer: “pai, se eu assaltasse um banco dizias à polícia?”

Obviamente disse-lhe que não e ele acrescentou: “mas a partir daí seria um criminoso, não tinhas a obrigação de fazer o que era certo?”. Insisti que sim, que devia fazer o certo. Neste caso, o certo, era proteger um filho, fizesse ele o que fizesse. Mais depressa o ajudava a roubar o banco do que chamava a polícia. Até porque, como sabeis, ladrão que rouba ladrão tem 100 anos de perdão.

Vem isto a propósito do espetáculo que foi ontem dado naquela comissão de inquérito ao caso das gémeas do Marcelo. Vocês são pessoas ocupadas e, muito bem, não paparam aquele circo mas eu, preso no trânsito durante 6h, mastiguei cada bocadinho daquele caramelo.

Para vos poupar à introdução fastidiosa, atalho já dizendo que aquela mulher (a mãe) nem devia ali estar. Não importa se é rica, pobre, se teve regalias ou não. É absolutamente irrelevante como chegou ao Nuno, filho do Marcelo, ou se era íntima do Lacerda Sales. Era uma mãe a virar o mundo em busca de todas as cunhas que pudessem salvar a vida das filhas. E, aparentemente, conseguiu essas cunhas e foi apanhada em contradições. Compreende-se que não possa dizer que lhe deram o jeitinho porque vai comprometer gente poderosa mas, enfim, o resultado final é o mesmo. Não é ela que deve estar ali. No lugar dela teria vendido a alma ao Diabo, se necessário fosse.

A primeira pessoa que devia estar ali sentada é o CEO de uma empresa que vende um medicamento por 2 milhões de dólares. A segunda, terceira, quarta e até às duas centenas, seriam os responsáveis governativos que permitem que esta companhia opere ou venda sequer nos respectivos países. Como é que a vida de um ser humano pode estar dependente de um fármaco que custa 2 milhões de dólares? Por mais rara que seja a doença, como é que uma família é colocada no dilema de ter que arranjar uma fortuna para salvar um filho?

Os deputados à direita tentaram ir atrás das contradições da mãe com o do PSD, em particular, a fingir que fazia perguntas enquanto tentava proteger Marcelo e companhia. O do PS avançou com a revelação do mail que daria palco a Ventura para brilhar. À esquerda houve alguma decência no reconhecimento que não deveria ser aquela pessoa ali sentada mas convém dizer que, apenas o PCP se insurgiu contra os verdadeiros culpados de toda aquela situação (a farmacêutica). Vou repetindo isto porque me parece que nos vamos perdendo na espuma das distracções e tendemos a não perceber a origem dos problemas. No caso das gémeas como em tudo o que, de forma sensacionalista, nos vão apresentando diariamente.

Ventura aproveitou o palco para ser aquele escroque que os eleitores do Chega adoram. Aliás, é bom notar que mesmo com um grupo parlamentar de 50 grunhos, continua a ser o grunho-mor a aparecer sempre que a audiência é garantida. E como brilhou Ventura! Como jurista inteligente que é, entalou a depoente não sei quantas vezes e apanhou-a em contradições várias. Como se de facto fosse ela a criminosa. Nada disso importa porque Ventura não estava ali para perceber a verdade. Todos percebemos ao fim de poucos minutos o que aconteceu e de onde veio a cunha. Ventura estava ali para fazer de justiceiro da nação, defensor do SNS e para recuperar mais uns quantos votos. E claro, para produzir novos soundbytes para a ChegaTV. Conseguiu tudo. Fez o pleno. E ainda fingiu que tinha revelado o mail da senhora e da nora do presidente, em direto, sem querer. É um artista de corpo inteiro.

Houve uma cunha para facilitar o acesso a um medicamento que, num mundo justo, seria de livre acesso. Há poucas dúvidas sobre isso. Resta agora saber se o fogo se apaga nos bispos (Nuno e Lacerda) ou se queima o rei (Marcelo). O que não deixa dúvida alguma é que será Ventura a colher os louros do cheque-mate.

Uma última nota para Sandra Felgueiras, cujo trabalho foi atacado pela mãe das gémeas, e que na CNN mostrou um gozo quase mórbido a justificar as contradições da depoente e a validade das gravações escondidas pela equipa da TVI. Percebo a excelência do trabalho de investigação mas, neste caso em concreto, mostrou uma necessidade assustadora de massacrar quem já estava no chão e, ainda por cima, era obviamente o alvo errado. Desconfio sempre de quem repete ad eternum como é séria no trabalho que faz, para justificar todo e qualquer atropelo à humanidade. Isto de investigar mães no Brasil com a moralidade do Olimpo, tem qualquer coisa de ironia escabrosa.»

Tiago Franco (1)

(1) No Facebook em 22/06/2024.