Sobre a decadência do jornalismo, por Paulo Querido

(Aviso: O título é da minha responsabilidade.)

«O lugar dos jornais de papel é no museu. O destino das marcas de jornalismo é pulverizarem-se. Um pequeno número delas torna-se num supermercado que tem tudo, desde a gordura barata a vinhos gourmet (NYT, Público, El País…), a maior parte das marcas feitas no papel tem simplesmente os dias contados: sem geografia não se podem distinguir (todo o espaço online é ocupado pelos supermercados) e não há racional económico que sustente as suas operações. (Há outros, contudo. Da RR ao Sol, passando pelo I, para dar os exemplos que me ocorrem de imediato. E o próprio racional de Marco Galinha, sendo económico, foi lateral — os ganhos foram noutros lados, eventualmente inconfessáveis, não na atividade do grupo em si.)
Uma fatia considerável de jornalistas têm futuro em publicações digitais de nicho, especializadas, de pequena dimensão, algumas até de dimensão unipessoal (as newsletters, de que há tão poucos exemplos em Portugal mas há belíssimos exemplos noutras paragens, e os podcasts, que cá têm feito algum percurso, mesmo tímido).
A rádio é uma besta diferente. Basicamente, tem uma transformação processual, técnica, mas a sua genética mantém-se: levar informação a pessoas que têm as mãos ocupadas e os olhos também, estão condicionadas, mas alguma atenção disponível no cérebro, que pode ser ocupada através dos ouvidos.

A televisão é poderosa, mas a televisão é essencialmente uma fantástica máquina de propaganda. O jornalismo tem nela um ínfimo papel, que é o de conferir a respeitabilidade na medida necessária, e apenas nessa, à plausibilidade da operação. As notícias não passam de balas para apontar à cabeça dos inimigos da propaganda alugada à estação.

Nunca tivémos tanto escrutínio dos poderes públicos como agora, escrutínio bom e mau, não na sua formulação mas nos seus efeitos. Também nunca tivemos tão pouco escrutínio dos poderes privados: dos consumidores aos trabalhadores, a invisibilidade de largos grupos da população é total e o seu poder diminuiu de forma impressionante nos últimos 20 anos.

Nunca existiu tanta opinião pública como existe hoje. Nunca houve tantos artistas e tanta produção cultural — inclusive nas letras, e fora delas então é uma autêntica vertigem produtiva — como hoje.

Eu percebo os textos lindos, alguns magníficos como o de Miguel Esteves Cardoso, e sou geracionalmente muito sensível à solidariedade com os trabalhadores do grupo Global Media. Mas tudo isso é passado. E um passado que não tem regresso.

Estamos para lá da Era Gutenberg, uma magnífica era para a Humanidade, deu-nos o Renascimento e o ambiente necessário à Revolução Industrial, abrindo a porta à consciência de classe, deu-nos o poder editorial, fez nascer o jornalismo.
Temos esse mundo pelas costas. Alguns de nós rejeitam o facto, o que não o altera. Esses teriam de ser num número muito, muitíssimo maior do que são para poderem influenciar (nem digo alterar) o rumo das nossas sociedades.
E há os erros de percurso. JN e DN (e seus produtos satélite, O Jogo e Dinheiro Vivo) tiveram uma janela de oportunidade para fazer o que o teria evitado este destino do desaparecimento às mãos de interesses económico-financeiros — uma morte privada de qualquer assomo de glória: unirem os recursos para competirem online pelo lugar de supermercado da informação em Portugal, que veio a ser ocupado pelo Público (uma marca minúscula, comparada com os históricos).
Sem os erros, estas duas marcas passariam para a próxima era? Talvez. Não é seguro. Seguro é dizer que eles contribuíram para a decadência cada vez mais acentuada dessas duas marcas.
E agora? perguntas tu.

Agora é demasiado tarde para esses dois. Oxalá os trabalhadores consigam receber algumas indemnizações de jeito nos processos de dilaceração que se antevêem. Uns terão lugar noutros jornais. Muito poucos estão em condições de dar os passos para as publicações pequenas com lugar no futuro, não tanto pela falta de conhecimentos e vontade, que também há e muita, mas porque essa é uma trajetória longa e incerta e que necessita de um respaldo financeiro para a sobrevivência.

Quanto a tu e eu e nós, sociedade, passada esta erupção de indignação, seremos bombardeados com outras indignações para nos ocuparmos. Nem a democracia fraqueja por isto (fraqueja por outras razões), nem haverá menos escrutínio sem DN e JN, nem haverá menos alternativas de consumo de cultura, de informação e de entretenimento.»

Paulo Querido (1)

(1) No Facebook em 13/01/2024.