O golpe do génio: novo episódio do folhetim Manguel-Medina, por Diogo Ramada Curto

«É que Manguel, repito, poderá ter dado um golpe de génio, porém, só Medina pode ser responsabilizado por ter enfiado a carapuça.

No protocolo de doação da biblioteca de Alberto Manguel à Câmara de Lisboa e criação de um Centro de Estudos de História da Leitura (12-9-2020), a relevância daquela biblioteca encontra uma das suas justificações num livro de sua autoria, intitulado A Biblioteca à Noite (tradução de Rita Almeida Simões, Tinta-da-China, 2016). Por isso, pode dizer-se que as condições de privilégio concedidas a Manguel e à sua biblioteca se baseiam naquilo que ele próprio escreveu.  

Tudo indica que, ao ler o livro, Fernando Medina – à época Presidente da Câmara de Lisboa, cujos conhecimentos literários ou livrescos não podem ser postos em causa pela simples razão de serem desconhecidos do público, mesmo o mais informado – ficou embasbacado. Um livro de tal erudição, que fora originalmente publicado pela Knopf Canada (2006) e pela Yale University Press (2008), era a prova do belo negócio que estava para acontecer. A oportunidade não podia ser desperdiçada.

Tal como Georges Pompidou erguera o seu Centro de Arte Moderna, em Paris, com certeza que a instalação da biblioteca e do centro mangueliano no Palacete dos Marqueses de Pombal levaria Fernando Medina a passar à história como o novo Marquês de Pombal. Não um marquês como o outro, que deixara marcas no urbanismo e nas construções em pedra, mas um marquês com ânsia de cultura e gosto pelas bibliotecas. Um marquês que ainda sonhava com o Quinto Império da língua, da cultura e da comunicação cosmopolita entre os povos. Que bonito!    

Aliás, bastou-lhe ler, na contracapa da tradução portuguesa: “A partir da sua mítica biblioteca pessoal, Alberto Manguel, um dos maiores bibliófilos do mundo, conta-nos tudo o que sabe sobre a história, o fascínio e os enigmas das bibliotecas”. Havia que acelerar o processo, mostrar eficácia e canalizar as verbas necessárias para a sua execução. Com a simplicidade própria de “um dos maiores bibliófilos do mundo”, Manguel insinuara-se bem. Começara por grandes exigências, mas depois lá foi cedendo, ficando-se pelos mínimos. 

O que lhe interessava era encabidar-se, fosse como fosse, para ficar a dirigir e coordenar artisticamente a actividade do Centro de Estudos de História da Leitura. Claro que para o fazer tinha de dispor de uma consultora da sua confiança, por ele nomeada, uma amiga dilecta quanto mais não fosse para lhe fazer companhia e o ajudar na coordenação de um programa a estabelecer, com calma, à medida que a catalogação das obras fosse avançando.

A doação de uma biblioteca mais do que medíocre, com um valor de mercado inexistente porque ignoto, a troco da liberdade para comprar mais livros e desenvolver outras actividades. Tudo isto – incluindo a sua nomeação para director ou coordenador artístico de um dos equipamentos da Câmara, e de uma assessora-consultora – não podia ser desperdiçado. Que outra terra se deixaria deslumbrar a ponto de lhe oferecer as mesmas condições? Nenhuma, concluiu Manguel com sentido realista, prescindindo das exigências e contentando-se com o que lhe davam.    

E em maré de patranhas e do jogo de quem enfia mais o barrete, vem a propósito lembrar a história de José Bálsamo, Conde de Cagliostro. Chegado de Madrid e não de Londres, recordou Camilo Castelo Branco, “o embusteiro, quando esteve em Lisboa, ainda se não tinha agraciado com os vários títulos […]. As coroas nobiliárias inventou-as depois, à proporção que ia mudando de terra, perseguido pela justiça”. O certo é que a nobreza do reino já fora apanhada pelo Cagliostro. Anselmo Sobral e o Duque de Lafões – conta Malheiro Dias – não pareciam suspeitar do seu plano obscuro. Só o Intendente se apercebeu da patranha e reconheceu, numa das janelas do Palácio Sobral, a sombra do Cagliostro.   

Golpe de génio, já o dissemos, foi o do Conde de Cagliostro new age que não tem peias em revisitar os temas de Jorge Luis Borges, ad nauseam. Pese embora o facto de que aquilo que é original e nos surpreende em Borges mais parece uma pastichada nas reutilizações manguelianas, ainda por cima repetidas de livro para livro. Tudo uma imitação pífia – da biblioteca pessoal a Dante e a outros autores, dos labirintos do saber e de Babel ao eclectismo das suas leituras e ao estatuto de leitor – para que  Manguel pudesse declinar Borges até cansar os seus leitores: “não sei se sou um bom escritor; penso ser um excelente leitor ou, em todo o caso, um sensível e agradecido leitor” (Borges, Biblioteca Pessoal, trad. Cristina Rodriguez e Artur Guerra, Quetzal, 2014, p. 7).  

Mas já é tempo de entrar em A Biblioteca à Noite. No meu entender, como costuma dizer o meu amigo Sr. Xana, especialista em transportes e mudanças de mobílias: as partes boas – que versam objectivamente sobre organização e funcionamento das bibliotecas – não me parecem ser lá muito originais, nalguns casos roçam mesmo o nível de constatações banais; e as partes mais originais – constituídas por registos mais autobiográficos e relacionados com a sua biblioteca pessoal – não são boas.

Explico-me melhor. O facto de Samuel Pepys, no século XVII, estar preocupado com os formatos dos seus livros é uma afirmação banal de Manguel, que passa de livro em livro e de seminário em seminário. Pela minha parte, faz-me recuar aos seminários de Roger Chartier da década de 1980.  O mesmo se diga de todo e qualquer critério de classificação que preocupa Manguel, incluindo o sistema decimal de Melvil Dewey, conforme se pode ver no rosto do Catálogo do Gabinete Português de Leitura no Rio de Janeiro (1906) da autoria de Benjamin Franklin Ramiz Galvão. E considerar Les Sirènes (Paris, 1858) de Georges Kastner uma obra rara, porque só existe na Biblioteca Nacional de França e não em Poitiers, como faz Manguel na página 253, revela erudição insuficiente e desconhecimento do que é verdadeiramente raro. Aliás, o livro – que Manguel não leu mais do que o rosto – está à consulta na Biblioteca Nacional.  

A mesma lengalenga pode ser dita da genealogia mangueliana que começa na Babel bíblica, passa pela Biblioteca de Alexandria, chega às bibliotecas régias do tempo de Gabriel Naudé, avança até às bibliotecas nacionais coevas de Sir Antonio Panizzi, para culminar nas resistências do livro impresso em tempos de comunicação electrónica. Tudo generalidades bem banais, proferidas de forma pomposa, tanto mais quanto lhes subjaz a confissão pessoal, íntima. Senão vejamos.

Na página 35, Manguel escreve: “Na nossa época, destituída de sonhos épicos – que substituímos por sonhos de pilhagem –, a ilusão de imortalidade é criada pela tecnologia.  A Internet, e a sua promessa de voz e lugar para todos […]”. Sinceramente, com tanta atenção dada a Homero e aos seus poemas épicos, duvido que Manguel os tenha entendido. Aliás, o incauto leitor, se quer ler e compreender Homero, comece por Frederico Lourenço. Primeiro, não representarão os poemas épicos uma projecção no passado, a ponto de se poder dizer que, quando se escreviam, se julgava que o sonho de grandeza já só existia no passado? Segundo, a oposição entre sonho épico e sonho de pilhagem não será interior à própria épica, como sucede em Os Lusíadas? Do mesmo modo, o grande contraponto à épica, com os romanos mas também no século XVI, não estará na sátira, capaz de pôr em causa a grandeza superlativa dos poemas épicos? Assim parece ter sucedido, a ponto de se atribuir a Homero a Batracomiomaquia, que conta a história daguerra das rãs e dos ratos. Por último, entre a elevação do sonho épico e a idade da tecnologia, quantas camadas de reflexão precisam de ser omitidas para considerar que se trata de uma oposição inédita? 

Contudo, a primeira grande operação que tem em vista elevar a biblioteca e o estatuto de leitor de Manguel a algo de superlativo surge oito páginas mais à frente: “Com sete ou oito anos, já reunira no meu quarto uma Alexandria minúscula, com cerca de uma centena de volumes de diferentes formatos, sobre toda a espécie de assuntos”. Há, pois, que aturar o jovem prodígio que começara a sua pequenina Alexandria. Para efeitos de pretensiosismo, sinceramente, prefiro Thomas Carlyle que, ao entrar na adolescência, já tinha lido quase todos os clássicos greco-latinos. Tal como repetiu em várias entrevistas, Manguel sabe bem promover a sua biblioteca e o seu estatuto de leitor, apresentando-a, ab ovo ad mala, como uma nova Biblioteca de Alexandria. Quanto ao seu estatuto, só o venerando Borges o ultrapassa (com a única diferença de que Borges é verdadeiro e Manguel soa sempre a falso).

Chegados à página 248, Manguel antecipa o seu sonho que, sem ser uma coisa épica, tem algo de profético. Conta ele a conhecida história da chegada de Petrarca a Veneza, em 1362, e da sua doação. Dando voz, embora em segunda mão, a Petrarca, Manguel refere que, em troca de um palazzo na Riva degli Schiavoni, só impôs que os seus livros fossem “preservados na perfeição […] num local à prova de fogo e chuva a ser designado para esse propósito”. É certo que Petrarca reconheceu, nas palavras de Manguel, “que os seus livros não eram nem numerosos, nem muito valiosos”. No entanto, tinha esperanças de que aquela “cidade gloriosa [lhe] acrescente outros livros, a expensas públicas, e que também indivíduos particulares […] sigam o exemplo […]. deste modo, poderá ser facilmente possível estabelecer uma biblioteca grande e famosa, igual às da antiguidade”.

Frente às duas comparações entre a biblioteca mangueliana e, respectivamente, a gigantesca de Alexandria e a de Petrarca (que apesar de ser considerada modesta esteve na origem da Biblioteca Marciana de Veneza), será impossível aceitar que os sonhos épicos e megalómanos de Manguel possam pertencer ao passado.

Mais uma vez, topa-se aqui com uma interferência do quadro imaginário que se inspira no livro. Nele, a sombra de Manguel, sempre que se aproxima das janelas do Palacete dos Marqueses de Pombal, revela quem conseguiu dar um golpe de génio. A nobreza da cidade, que estava no poder em 2020 à data da assinatura do protocolo, à cabeça da qual estava Fernando Medina, nunca lhe pediu nenhuma credencial, não mandou avaliar sequer a sua modesta biblioteca, confiou nele, respeitou-lhe as ideias que ninguém sabe ao certo quais são (pois ele é apenas um leitor), assobiou para o lado, mesmo sabendo da sua colaboração na Argentina com o governo de Mauricio Macri, enfim, achou suficientes as patranhas por ele contadas em A Biblioteca à Noite.  

Se isto fosse na época de José Bálsamo, Conde de Cagliostro, o Intendente já lhe tinha caído em cima. Mas, agora, os tempos, por ele injustamente considerados da tecnologia e da Internet, mudaram. Amaciaram. Tudo é possível. É o que lhe vale.

O golpe é, de facto, de génio. Porque Manguel simula não só uma espécie de desinteresse pelos assuntos terrenos, como também um apolitismo perfeitamente infantil. Nem a nobreza política, nem os putativos intendentes ou inquiridores se podem sentir beliscados. O seu mundo é o das alturas, dos livros, das leituras, das bibliotecas, dos grandes nomes da literatura universal e do ensaísmo (de Homero a Borges, de Petrarca a Walter Benjamin), mais ainda o das viagens extravagantes. A este respeito, volta a ser pertinente o exemplo de Petrarca quando se refugiou nos livros e no projecto de trocar a doação da biblioteca por um palácio, porque “estava cansado das tricas da corte de Avignon” (A Biblioteca à Noite, p. 248).  

Mas Manguel, no seu desígnio de buscar o consenso e de ser simpático com todos os que o acolheram e lhe deram condições de privilégio, não se mete em política. A não ser que as causas sejam consensuais e lhe possam trazer algum benefício, em termos da defesa dos seus interesses e da sua biblioteca. Assim, a chave do mito parece estar na teoria dos dois corpos do rei: entre Manguel e a sua biblioteca, o golpe está na criação de um corpo místico com o qual endrominou tudo e todos, a começar na nobreza da terra.

O livro em causa, que serviu de prova e atestou a excelência de uma biblioteca, demonstra à saciedade a aposta de Manguel no apolitismo que melhor defende os seus interesses. Por exemplo, Gabriel Naudé é citado a páginas 79-80 pelo seu Advis pour dresser une bibliothèque (1627, 1644), mas nenhuma ligação é estabelecida com as suas obras de carácter político, a começar pelas suas Considérations politiques sur les coups d’État(1639). O mesmo se passa com Antonio Panizzi, o influente bibliotecário do British Museum, que não merece ser citado directamente, mas em segunda mão, através de outros. No entanto, a simples consulta do seu Catalogue of Printed Books in the British Museum(1841), cujo primeiro volume pode ser consultado na Biblioteca Nacional, ao Campo Grande, revelaria até que ponto uma classificação pode conter em si tantas mensagens políticas. O mesmo se diga das Lettres à M. Pannizzi 1850-1870(1881), da autoria de Prosper Mérimée, publicadas por Louis Fagan, conservador de estampas no British Museum. Trata-se de uma história sobre a política do Segundo Império que não podia deixar de ser fortemente ideológica e que, ao ter sido escrita sob a forma de correspondência, também comprometeu Panizzi. O mesmo se passa com as investigações (que Manguel desconhece) de Jacob Soll relativas aos sistemas de informação e as bibliotecas de Richelieu e Colbert, consideradas autênticos instrumentos políticos.

Último parêntesis que aqui irrompe. Na Biblioteca Nacional, em Lisboa, encontram-se umas inspiradoras peças do libelo contra o Conde de Cagliostro e a sua mulher, por se terem apoderado do colar da Condessa de la Motte. A história é complicada e não há espaço para a reconstituir. Contudo, será de reter um pequeno pormenor, ou seja, o momento em que o Cardeal de Rohan, procurando sacudir a água do capote, reivindicou que estava inocente e argumentou que nada tinha que ver com o golpe, que ele era apenas “o joguete, o instrumento, a vítima da fraude” (Réflexions rapides pour M. le Cardinal de Rohan sur le sommaire de Madame de la Motte, 1786, p. 6).  

No meio de um tal processo, essa defesa é esclarecedora, pois ajuda a compreender melhor o caso em apreço. É que Manguel, repito, poderá ter dado um golpe de génio, porém, só Medina pode ser responsabilizado por ter enfiado a carapuça. Um barrete de tal dimensão que faz com que um livro, que é mais um inventário de citações, surja como prova da importância de uma biblioteca, que nunca devia ter saído do armazém em que estava no Canadá. Tudo pago a peso de ouro, com coordenador artístico e assessora às ordens, a contrariar os apertos e miserabilismos cá do burgo. Num espalhafato de festa, que já se constituiu como uma representação de il mondo alla rovescia, nada como os socialistas para mostrar grandeza!

Dito isto, acrescente-se que nunca é tarde para voltar atrás. Claro que, do ponto de vista político, admitir outro erro crasso seria desastroso para o futuro político de Fernando Medina. Tanto mais que se trata, apenas, de uma biblioteca e só estão em causa uns escassos milhões. Uma bagatela… Só se Manguel se apercebesse de que o barco já está a arder. Mas quem poderá falar com ele? É que os amigos que de início o apoiaram, agora que as coisas estão mesmo a dar para o torto, já estão a saltar do barco. No entanto, são muitos os que começaram a falar na necessidade de ele próprio recuar e partir, nem que fosse numa jangada, agarrado aos caixotes dos seus livros. Com a sua Alexandria ambulante, choroso, vítima de quem o desmascarou, é certo que correria o risco de naufragar. Mas, Atlântico acima ou abaixo, salvar-se-ia a dignidade, não a dele, mas do outro. Não sendo assim, o que fica? 

O que fica é o caso de uma cultura política que se baseia no pedido pessoal, na troca de favores, no amiguismo e nas clientelas; no capricho autoritário e arbitrário do foguetório cultural, situado nos antípodas do miserabilismo da gestão do quotidiano, sempre excepcional, feito à margem das instituições; no deslumbramento provinciano com o figurão, detentor de um projecto mítico e mirabolante, que vem do estrangeiro, e que conseguiu dar — nunca é demais repeti-lo — um golpe de génio; no formalismo legalista, baseado em protocolos e documentos escritos de um Direito a que se atribui uma veneração que dispensa escrutínios e se opõe a qualquer tipo de opinião pública, que tem de ser silenciada ou, simplesmente, censurada.

Nas horas vagas da Torre do Tombo, muitas vezes ao fim do dia, dedico-me a ler a correspondência para Salazar. Constato, então, nas cartas a pedir favores e colocações, sempre a troco de fidelidade política, as origens da mesma cultura política. É que, sob a capa de um projecto de integração corporativista, o que desaguou no salazarismo foi a defesa dos interesses criados, de que falava Jacinto Benavente.  

Mais de setenta anos depois, aquele que foi presidente da Câmara de Lisboa e é agora ministro de um governo socialista maioritário – com certeza involuntariamente e sem que se possa atribuir qualquer responsabilidade a Salazar – é bem a imagem de como é possível reproduzir os mesmos traços da mesma cultura política antidemocrática. É o que acontece nos casos que se vão multiplicando de participação de Medina na comissão de honra de Luís Filipe Vieira, de nomeação de Sérgio Figueiredo, da indemnização de Alexandra Reis, a que se acrescenta, agora, o não menos genial Alberto Manguel.»

Diogo Ramada Curto (1)

(1) Opinião no Contacto, 06/01/2023.