São Tomé e Príncipe e Rússia, arrogância e preconceito, por Carlos Branco

«Passados 50 anos, não se assimilou o facto das relações de Portugal com os novos países de língua oficial portuguesa terem de se subordinar a uma lógica de pares inter pares.

Nos 50 anos do 25 de Abril, o Presidente da República (PR) de Portugal tomou a importante iniciativa de reunir no Centro Cultural de Belém os seis presidentes das antigas colónias portuguesas, que malogradamente arruinou por declarações inoportunas e sem sentido.

A assinatura de um acordo de cooperação militar entre São Tomé e Príncipe (STP) e a Federação da Rússia provocou um enorme frisson no establishment político doméstico. O PR disse que não sabia nada sobre o referido acordo, mas que o vai “querer conhecer”, defendendo simultaneamente a importância de salvaguardar a unidade da CPLP; o Ministro dos Negócios Estrangeiros (MNE) afirmou que Portugal e “outros Estados europeus manifestaram estranheza, apreensão e perplexidade perante este acordo”.

Além disso, um muito preocupado deputado da Iniciativa Liberal (IL) afirmou que Portugal não se pode manter “surdo e mudo” perante o que se está a passar ao nível da política externa de vários estados-membros da CPLP, referindo-se à participação do presidente da Guiné-Bissau nas celebrações do dia da vitória sobre as tropas nazis em Moscovo.

Tal ousadia das autoridades são-tomenses e guineenses exigia uma reprimenda pública para terem vergonha e não voltarem a “prevaricar”. Habituados a calarem-se quando outros Estados opinam sobre a sua política interna, presumiu-se que os visados se iriam comportar do mesmo modo. Mas o tiro saiu pela culatra. A resposta foi direta e poderosa, com o inconveniente de algumas das considerações serem difíceis de engolir. Puseram-se a jeito.

Não precisamos de Portugal“, disse o primeiro-ministro Patrice Trovoada. STP não precisa de Portugal para se relacionar com a Europa. As autoridades portuguesas só conhecerão o acordo militar com a Rússia se vier a ser publicado. “Aqui há o respeito pela soberania e há o respeito das regras diplomáticas, por conseguinte há coisas que não fazem sentido”, prosseguiu Trovoada.

Em resposta ao MNE, Trovoada disse que “isto é o problema do MNE de Portugal. Nós [STP] temos relações bilaterais com muitos países e não precisamos de Portugal para nos relacionarmos com outros países. Sejamos claros, se um país europeu quer manifestar preocupação, fala comigo, e não fizeram isso”. “[STP] Não pede para ver quando Portugal assina acordos com terceiros.”

E para dar o assunto por terminado, o chefe do governo são-tomense recordou que muitos países, incluindo os europeus, continuam a manter relações com a Rússia, apesar da guerra com a Ucrânia. “Eu quero também lembrar que muitos países europeus… continuam a importar gás, petróleo e urânio da Rússia”. Adiantando que “as coisas estão claras, estão tranquilas”, e o acordo com a Rússia “está em vigor” e vai acontecer.

O presidente guineense Umaro Sissoco Embaló fez declarações semelhantes às do primeiro-ministro Trovoada: “Não preciso de autorização de nenhum outro país ou Presidente da República para visitar a Rússia ou onde quer que seja. Eu sou soberano… não vou aceitar também que um presidente me peça autorização para visitar o Senegal. Isso não. A Guiné-Bissau é um Estado soberano e independente”, salientando que a política externa do país é determinada pelo respetivo governo.

No mesmo sentido, Zacarias da Costa, Secretário Executivo da CPLP, afirmou mais diplomaticamente que o acordo de cooperação militar celebrado entre STP e a Rússia “não é um drama”, sublinhando que, “naturalmente, temos [CPLP] de respeitar as decisões soberanas das autoridade de STP”. Seria bom retirar ilações destas reações, que colocaram Portugal numa situação incómoda e de grande fragilidade.

Cinquenta anos parece não ter sido tempo suficiente para se ultrapassar o paternalismo e algum complexo de superioridade do tempo colonial. Não se assimilou o facto das relações de Portugal com os novos países de língua oficial portuguesa terem de se subordinar a uma lógica de pares inter pares.

As declarações dos intervenientes nacionais foram tremendamente insensatas e imprudentes. Não nos recordamos de alguma vez terem criticado publicamente o Brasil pela adesão aos BRICS, ou os países europeus que participaram nas sanções à Rússia e que continuam a fazer negócio com Moscovo. Não entendemos por que motivo não expressaram o seu desconforto sobre o modo como a Hungria e a Eslováquia se relacionam com o Kremlin.

Comportamentos desta natureza não ajudam a diplomacia nacional a ganhar votos no Sul Global, ainda não refeito das marcas do colonialismo, na candidatura de Portugal a ocupar um dos dois lugares de membro não permanente do Conselho de Segurança da ONU, atribuído ao grupo da Europa Ocidental e Outros Estados, para o biénio 2027-2028.

As declarações do PR e do MNE criaram tensões desnecessariamente e alienaram a posição de Portugal no seio da CPLP. A crispação e o ruído que se seguiram não contribuíram para reforçar a coesão da organização. A participação do Brasil nos BRICS não colocou em causa a CPLP. Não se percebe porque é que o aprofundamento das relações de STP com a Rússia iria colocar agora. Faz sentido que os países diversifiquem as suas relações exteriores e escolham os seus parceiros. É uma prerrogativa dos Estados soberanos.

Os puristas da indignação tardia deviam fazer jus à sua incomodidade e levantar a voz contra a presença da Guiné Equatorial na CPLP, um país que não pauta exatamente o seu comportamento pelos valores democráticos que defendem. E, já agora, por uma questão de coerência, estenderem o critério a Angola e a Moçambique.

Estes desenvolvimentos com a Rússia não comprometem as cordiais relações de STP com os EUA, nomeadamente ao nível militar. Não há manifestação da vontade de STP renunciar ao acordo celebrado com a Voz da América, respeitante às estações de retransmissão que esta mantém em território são-tomense.

Ao contrário do que afirmam as cartomantes do comentário, o acordo entre STP e a Rússia, que só a estes diz respeito, não tem por objetivo atacar Portugal. São comentários sem sentido, que escamoteiam o cerne da questão e o que está verdadeiramente em jogo: as tensões que opõem o Ocidente à Rússia e à China numa competição geopolítica por influência no Sul Global. Esta é a interpretação mais plausível para esses acordos. Está ainda por perceber até onde vai a concertação entre Moscovo e Pequim. É subordinado a esta lógica que se deve ver a presença do presidente Embaló em Moscovo.

No debate deste tema, não podemos excluir a assinatura de um memorando de entendimento entre empresas chinesas e a Guiné-Bissau para construir infraestruturas ferroviárias, rodoviárias e aeroportuárias no país, em particular, um porto de águas profundas em Buba, que permitirá o escoamento da bauxite e a atracagem, em simultâneo, de três navios até 70 mil toneladas, abrindo as portas ao interior do continente.

A sua concretização contribuirá para aumentar a integração regional, desbloqueando o comércio internacional e o desenvolvimento do fluxo comercial de mercadorias em grande escala. Sem nos esquecermos do petróleo e do gás que existem em grandes quantidades nas águas sob soberania da Guiné-Bissau e do Senegal.

Como nos recordou em tempos um primeiro-ministro, estamos mesmo fadados para sermos alunos bem-comportados. A reprimenda à STP e à Guiné-Bissau serviu para mostrar serviço e obediência a um Deus maior, mesmo que isso seja em detrimento do interesse nacional. Assim, é difícil construir um país a sério.»

Carlos Branco (1)

(1) Opinião no Jornal Económico, 16/05/2024