Porque fazem isto?, por Luísa Semedo

«Estamos a recolher alguma da juventude que felizmente plantámos, quando se decidiu ensinar nas escolas os direitos humanos, falar de ecologia, de liberdade e igualdade

Era só mais uma daquelas reuniões tardias na associação. Aqueles a que eu chamava “sages”, os sábios, dissertavam sobre o porquê de nas suas idades, em que já podiam somente saborear a reforma e preocupar-se com os netos, ainda andarem naquelas andanças. Um dos sages diz: “Sabes, Luísa, é porque isto não é o que fazemos, isto é o que nós somos.” Nunca esqueci esta frase e pensei que deveria ter sido assim mais poética quando, anos antes, numa reunião num sábado de manhã para outra associação, um homem de fato, gravata e papéis, que se propunha ser nosso parceiro financeiro, nos pergunta se somos pagos para ali estar. Quando respondo que “não”, pergunta-nos, surpreso, porquê? “Porque fazem isto?”. “Batemos com a cabeça em algum lado e deu-nos para esta coisa”, respondi.

Hoje, quando vejo estudantes, ativistas pela Palestina, ou por qualquer causa de defesa de direitos humanos e ecologista a acampar em universidades, a manifestarem-se, a recorrerem à desobediência civil, a serem levados pela polícia como a Greta Thunberg ou a serem alvo de violência, de ameaças de “nunca mais encontrar trabalho”, a serem alvo de chacota porque “vão nas modas”, “não sabem nada de História”, “são mimados”, etc., penso na frase do meu querido “sage”. Quem assim desvaloriza, goza ou ameaça esta juventude e pensa que “vai passar porque é só uma moda” ainda não entendeu que isto não é o que fazem, mas o que são. Tal como era quem lutou pelos direitos cívicos nos Estados Unidos ou contra o apartheid na África do Sul e até à distância e apesar de não serem as principais pessoas visadas.

Nos dicionários a palavra “aliado” aparece como sendo somente quem forma uma aliança ou quem apoia outrem, mas falta algo de imprescindível na definição. Uma pessoa aliada no contexto da luta pelos direitos humanos é uma pessoa que não é diretamente visada e utiliza a sua própria posição de privilégio para amplificar, apoiar, promover os direitos e as vozes dos grupos de pessoas que são alvo de violência, discriminação ou opressão, nomeadamente sistémica ou estrutural. São pessoas conscientes da sua posição e que sabem ouvir, que sabem que cometerão erros e que, quando lhes chamarem a atenção, tentarão fazer melhor e não se fecharão em defesas irritadas e caricatas de reputação “ainda não eras nascida e já eu andava a colar cartazes contra o racismo”. Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista, dizia a Angela Davis, resumindo aquela que é a postura da pessoa aliada quer em questões de luta contra o racismo, quer de tantas outras causas que dizem respeito à igualdade e justiça. As pessoas aliadas, tantas vezes chamadas traidoras por opressores, são essenciais em todas as lutas que dizem respeito a minorias de poder. Inversamente, as pessoas falsas aliadas constituem um obstáculo considerável, uma perda de tempo e energia.

Estamos a recolher alguma da juventude que felizmente plantámos, quando se decidiu ensinar nas escolas os direitos humanos, quando se decidiu falar de ecologia, de “genocídios nunca mais”, de liberdade e igualdade para todas, todos e “todes”, de cidadania, quando decidimos valorizar pessoas como Nelson Mandela ou Martin Luther King, quando decidimos ensinar não só a fazer mas também a ser, tudo isto apesar de a teoria ser tão diferente da prática e de estarmos tão longe das promessas do contrato social. Não é por acaso que as forças conservadoras e reacionárias se dispõem a atacar as escolas e as universidades. É porque esta juventude não se fez só sozinha ou entre pares, nem só com o TikTok, fez-se também com a transmissão das lutas de outras gerações, algumas das quais parecem ter esquecido o que faziam e quem foram e outras que não participaram e que pensam que a liberdade e os direitos que têm hoje caíram do céu, sem luta, sem incómodo e até sem violência.

Que mensagem é esta que se está a passar à juventude com a criminalização sistemática da luta pela liberdade, igualdade e justiça universal? Precisamos, agora, também de ser pessoas aliadas da juventude aliada, porque sabemos por que fazem isto. Obrigada.»

Luísa Semedo (1)

(1) Opinião no Público, 16/05/2024.